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Amigos distantes

Recebi uma carta de um homem que, na prisão, leu alguns livros meus. Ao final da carta, antes da assinatura, ele disse que era um dos meus “amigos distantes”. Que não me conhecia pessoalmente, mas imaginava como eu era pelos textos que eu escrevia. A carta me foi entregue em uma palestra. Estava em Minas Gerais e, ao final, sua irmã me entregou a carta. Contou-me que o irmão havia lido muitos livros meus. Que sempre pedia mais um. Que um deles, “O pequeno filósofo”, ele sabia de cor alguns trechos. Aquela confissão encheu-me de alegria. Os livros nascem de nossas mãos, de nossas intenções e ganham vida. Não é possível saber onde eles chegam, que histórias frequentam, que solidões acalentam.

Disse-me ela da recuperação do irmão. As drogas roubaram-lhe a dignidade, enfearam-lhe a vida, mas hoje ele está melhor. Em pouco tempo deixará a prisão e encontrará uma família disposta a acreditar em recomeços. Falamos um pouco mais. Havia outros professores para partilhar da prosa. Guardei com cuidado a carta e, assim que pude, cuidadosamente a li.

Linguagem correta, passeios pelos seus sofrimentos dialogando com personagens que criei. Falou do “abacaxi miúdo”, um triste abacaxi de meu livro “A ética do rei menino”. Falou de minhas cartas. Falou do amor que devoto ao meu pai. E escreveu sobre o seu pai. O sonho de que, um dia, o pai não se envergonhe do filho. Eram algumas páginas em que a vida dele era entregue como uma confissão necessária. Explicou-me que me conheceu por acaso. Um outro presidiário estava lendo um livro meu escrito com o padre Fábio, “Cartas entre amigos”. Ele leu e depois quis ler os outros. Comentou comigo sobre o final de um romance meu e deu sugestões sobre um outro final para um livro infantil que escrevi com Maurício de Sousa.

Gosta ele de finais felizes. O tempo do trancafiamento estava sendo duro. Mas é ainda jovem. Disse que era grato pelo tratamento que recebia. Que ouvia histórias de outros presídios e de seus horrores. Já era duro perder a liberdade. Perder a dignidade seria ainda pior. Ele era bem tratado. Nele, habitavam vários sonhos. Um deles era escrever. Escrever para que outros jovens pudessem fazer escolhas diferentes. O primeiro dia em que experimentou a droga foi para não dizer “não”. Teve medo de não pertencer ao grupo de colegas que ele admirava. Depois quis novamente. Depois teve uma namorada que o levou para festas e nas festas drogou-se como quis. E chegou ao estágio em que já não vivia sem. E teve de buscar dinheiro lícito ou ilícito para honrar os compromissos com os traficantes.

Honrar compromissos? “Justo eu que desonrei minha liberdade e que optei pelos caminhos errados”. Quer ele prevenir os jovens. Dizer que não comecem. Cantar o canto da liberdade que não combina com vícios. Não me pediu nada na carta. Nem ao menos que, concluído o livro, eu o apresentasse a alguma editora. Não deixou sequer o endereço. Realmente o seu único desejo era me dar um presente. E que presente! Fui relendo a sua escritura e agradecendo ao ofício que abracei como vida. Escrever. Escrever com a responsabilidade de quem sabe o poder que tem sua excelência “a palavra”. Palavras que nos conduzem aos derradeiros instantes de decisão.

Somos um somatório de pessoas e livros que nos influenciaram, depositários de emoções alheias que ajudaram a formar as nossas. Na vida ou na literatura, conhecemos amores, vilões e heróis, medrosos e valentes. Nos textos, descobrimos teóricos que debruçaram sobre acontecimentos para neles jogar luz. Para que errássemos menos no futuro, para que compreendêssemos melhor o nosso estar coletivo.

O remetente da carta chama-se Francisco, apenas isso. Francisco, o santo. Francisco, o papa. Francisco, o jovem que, como tantos outros jovens, enfrentou e enfrenta o calvário. Que o desfecho seja feliz, como ele diz que gosta. Que um dia eu entre em uma livraria e encontre um livro de um tal Francisco, meu amigo distante.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 17/04/2016

A cidade, o cidadão

São Paulo é uma cidade apaixonante. São Paulo é uma cidade pulsante. São Paulo é vida. Vida que não para. 24 horas por dia. Tantas palavras já foram ditas por essa cidade. Tantos amores. Tantos temores. Poemas, traços e canções. Mario de Andrade já a tratou como “Paulicéia Desvairada”. Caetano a cantou em suas esquinas, “De um sonho de cidade à dura realidade”. Adoniram falou dos bairros e das partidas. E do trem. Do último trem. Da cidade, a grande locomotiva. Paulo Bomfim, nosso príncipe,  já a poetizou sem economias. A vibrante cidade carece, entretanto, de cidadãos que dela cuidem.

As críticas aos órgãos públicos, aos gestores de todos os níveis andam na moda. Mas é preciso ir além. E chegar à necessária crítica ao cidadão. Pontos viciados de lixo, pichações, córregos abarrotados de objetos de despejo, rotinas inadequadas, nascidas da ausência da consciência cidadã. Há, ainda, aqueles que despejam o que incomoda pela janela do carro. Seja a casca de uma fruta ou um pedaço de salgado. Uma lata de refrigerante ou um papel de bala. E então? O pensamento errático de que o meu lixo não faz diferença atrapalha o dia a dia da cidade.

Atrapalha, também, o que buzina, o que para em fila dupla, o que não respeita a faixa de pedestre, o que não cuida do que é comum. Do banheiro no metrô à poltrona do ônibus. Da carteira da escola aos espaços das praças. A cidade é de todos. E se, por um lado, a crítica correta ajuda os administradores; por outro, é preciso um senso coletivo de cuidado, de divisão de responsabilidades, de somas de amor.

Uma megalópole como São Paulo só consegue respirar se todos os seus habitantes, sem exceção, fizerem cada um a sua parte. Todos, em coletividade, fazendo valer a sua condição cidadã. E amar sua cidade é o que de mais nobre seu morador pode fazer por ela. Grande parte dos nossos problemas seria resolvida se tivéssemos um comportamento reto, generoso, ético, cidadão.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 15/04/2016

Pedaço de mim

Um filho morreu e uma mãe chora a necessária dor. Sim, necessária. Não há o que dizer para essa mulher que seja capaz de aliviar o susto, a ausência, a dor lancinante que a toma desprevenida. O filho estava bem. Foi viajar, apenas. Foi e não voltou. Um descuido. Quem sabe? Um caminhão encerrou um destino.

Ouvi o relato da mãe. O doloroso relato. Fui até ela. Abracei-a sem pressa. Disse pouco. Ouvi mais. Ela falou sobre a minha mãe que também perdeu filhos. Dois. Dois irmãos meus morreram na juventude. Ouvi. Não achei que era momento de falar sobre as minhas perdas ou sobre as cicatrizes que há em mim desenhando a saudade dos meus irmãos. O momento de dor era dela. Lembrei-me da canção de Chico Buarque de Holanda: “Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.

Disse-me a mãe que não conseguiria arrumar o quarto do filho. Seria demais. Remexer em bilhetes que estariam ali. Em documentos. Em pertences que dão vida a um quarto. Em roupas que lembrarão momentos. Festas que não voltarão a acontecer. Abraços que se ausentarão. O filho morreu. A dor não. Ela vive e quem sabe o dia que ela deixará de ocupar aquele cômodo?

A mulher tem fé. Disse que sabe que o filho não acabou. O filho vive no Amor, agora. Mas o beijo acabou. O encontro acabou. A rotina tão boa acabou.

Prossegue com sua indignação justa. “Não é certo”, diz ela. “É a inversão da lógica da vida. Os filhos enterram os pais e não o contrário. Eu não estava preparada para isso”. Que mãe está preparada para perder o filho? Mas não importa. O que importa é permanecer ali. Dizendo pouco, apenas o necessário para fazer nascer alguma esperança.

Haverá outros amanheceres, certamente. O tempo haverá de conversar seriamente com a dor e solicitar a ela que não preencha todas as lacunas da alma. Que parta aos poucos sem partir o que fica. É preciso respirar. De hoje, essa mãe não tem condições de avistar o amanhã. Mas ele virá.

Falou novamente da minha mãe. Quis saber como ela se recuperou. Eu disse sobre o milagre da transformação da dor em saudade. E lembrei-me novamente da canção. Da força da imagem da mãe que arruma o quarto do filho que já morreu.

A saudade vai ocupando as tais lacunas. E, aos poucos, ela vai colorindo um outro quadro. Bonito. Hoje, dói pensar no filho e como é impossível não pensar, apenas a dor existe. Chegará um amanhã em que a lembrança será capaz, inclusive, de roubar algum sorriso, de tempos de brincadeiras bonitas entre mãe e filho.

Mostrou-me o celular. Nas chamadas, lá distante, havia uma do filho. Não haverá mais. Até isso dói. “Um pedaço de mim se foi”, ela balbuciou entre lágrimas. Eu concordei. E delicadamente falei do poder de reconstrução. No inverno, não somos capazes de imaginar que, um dia, amanheceremos com uma paisagem completamente diferente. As árvores secas voltarão a florir. A morte é a primavera da alma.

Voltei para casa pensando nos problemas que criamos desnecessariamente. Nas vidas que complicamos. Nas relações que permitimos serem doentias. Tempos de desperdícios. Chorar por um filho que se foi não é um desperdício, é um humano jeito de dizer a Deus: “Essa perda para mim foi demais.”

Vou visitá-la de novo, certamente. É o meu humano jeito de obedecer a Deus, amando quem mais precisa de amor.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 10/04/2016

Um pouco de calma

Reparem ao lado. Nos acelerados. Não naqueles que, ciosos do dever, não perdem tempo e fazem o que precisa ser feito no tempo certo. Mas nos desnecessariamente acelerados. Nos perturbados. Nos que perturbam. Eles estão por todo lado. No trânsito, irritam-se com uma facilidade de arrepiar. Buzinam. Aceleram. São os senhores das ruas e das estradas. Usam o carro como uma arma. Estão em guerra. Nas filas, também. Quaisquer que sejam elas. Das rodoviárias às padarias. No banco ou no cinema. Estão se movimentando mais do que o necessário como se isso antecipasse os fatos.

Dias desses, fiquei atônito ao ver um jovem brigando com uma senhora na fila do cinema. Ela saiu da fila por alguns instantes para cumprimentar outra senhora e voltou. E o jovem se deu o direito de exigir que ela fosse para o final da fila. Aos berros, deu lições de civilidade. Feito lamentável. Alguns segundos de reflexão antes da ação ajudariam o jovem a lembrar que os lugares são marcados e que diferença alguma faria aquela senhora à sua frente ou atrás. Mas ele estava irascível. Era o dono da fila. Do mundo, talvez.

Em aeroportos, há agressões desnecessárias aos atendentes por atrasos aéreos. Vale lembrar que não são eles os donos das companhias. Que não estão no comando do avião. Nem da torre que autoriza pousos e decolagens. Mas como estão ali, é neles que os perturbadores se aliviam.Há ainda os acalorados debates sobre política ou futebol ou religião ou o que quer que seja. Há tantas certezas nesses discursos. Mentem todos para mostrar a razão. Razão?

Um pouco de calma ameniza a vida. Auxilia-nos a ter menos problemas de saúde e de convivência. Gostar desse ou daquele político não me faz menos ou mais inteligente. Torcer para um time e não para outro não me diminui nem me eleva. Acreditar nos valores religiosos que me iluminam a alma não me obscurece nem me faz melhor do que quem navega sua embarcação em outros mares. Brigar por quê? Para quê? Seja bem-vinda a serenidade. Não sei onde ela foi. Sei que faz muita falta.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 08/04/2016

Maria Gadú, talento e generosidade

Ela cantou, emocionou, tocou na alma de um jeito tão delicado.

Era um dia chuvoso. Muito trânsito. Chegou esbaforida. Mas não aliviou no intento mágico de acender os faróis da arte que todos têm, mas de que, às vezes, se esquecem. Cantou como menina tímida, um pouco envergonhada. Cantou como mulher, senhora da voz, ciente do ofício de fazer do palco a celebração da vida.

Era o CEU Quinta do Sol, na região da Penha. Ela cantou em vários CEUS, aliás. Ela e outras cantoras incríveis como Monica Salmaso, Alaíde Costa, Vânia Bastos, Fafá de Belém, Lecy Brandão, Jane Duboc, Áurea Martins, Graça Braga, Tata Godoy, Daúde, Virgínia Rosa e Letícia Sabatella. Tudo isso em homenagem à mulher. O “Março Mulher” contagiando a rede municipal de ensino de SP. Poderia falar de todas elas e das pessoas que lotavam os teatros em que elas se apresentavam. Cobraram menos pelos cachês. Aceitaram o nosso pedido de fazer com que as periferias de São Paulo tivessem esse privilégio. E foram deixando um pouco de si mesmas em suas canções.

Quero voltar à Maria Gadú. Assisti ao show dela no CEU Vila Curuçá, região de São Miguel Paulista. Gosto das suas músicas e do seu jeito livre de dizer e viver o que pensa. Admiro sua militância contra os preconceitos e a favor do belo. É bela a sua interpretação, sua composição.

Em um de seus shows, Maria Gadú soube que era tanta gente, naquele CEU, querendo vê-la cantar, que ela nos surpreendeu com sua generosidade. Fez o show. Esperou as pessoas se retirarem. Permitiu que as que não puderam assistir pela lotação do teatro entrassem e repetiu o espetáculo. Esqueceu-se do cansaço, esqueceu que já havia se entregado, como faz sempre, ao seu público, de corpo e alma. E reiniciou seu jeito elegante de fazer da canção o acender do farol. Cantou lindamente:

“Olhe só
Como a noite cresce em glória
E a distância traz
Nosso amanhecer
Deixa estar que o que for pra ser vigora
Eu sou tão feliz Vamos dividir”.

E ela dividiu. Deu o todo de si mesma para cada parte. Naquela noite, fez-se luz. Fez-se farol. Mais de uma vez. Fiz questão de escrever esse relato porque acredito que, em tempos estranhos de interesses estranhos, é saudável ser surpreendido por seres especiais. Generoso desejo de viver aquecendo vidas. Ou esfriando, se necessário for, vidas que deixaram se levar pelo ódio.

A arte é redentora. Ela é capaz de rabiscos certeiros na escritura das nossas entranhas. Rasga-nos a insensibilidade. E, exatamente por isso, tem o poder do êxodo. Nutridos por ela, saímos de nós mesmos em busca do outro. E é o outro o nosso desafio. É o outro, que será sempre diferente de nós, que de nós precisa para caminhar nas ruelas da incompreensão ou da poesia.

A poesia de Maria Gadú é livre como razão de existir. Livres podemos ser, se compreendermos os instantes preciosos que a vida nos proporciona. Todos eles. Mesmo os de dor. Mesmo os de solidão. Mesmo os de dúvidas. Quanto encanto traz essa última, a dúvida. Quanto poder ela tem. O poder de nos fazer mais humildes, o poder de nos preencher de curiosidades, de avidez por novas canções.

Fico pensando qual é minha música preferida na interpretação de Maria Gadú, São tantas. Depende de qual instante estou vivendo. Fico feliz em poder proporcionar esses instantes para essa gente tão especial que frequenta nossas escolas. Educação, arte, talento, generosidade.

Voltemos às escritas e ao seu poder. Escritas que podem traçar um outro destino para aqueles que acreditam que o destino depende dos destinados. Ou, em palavras mais claras, do livre arbítrio, da possibilidade de escolher quem queremos ser. Se tiver escuro demais para decidir, ouça uma música, leia um poema, contemple uma escultura, veja uma dança, chore ou ria em uma peça de teatro ou filme, talvez. No cantar de Maria Gadú, “Sem mais, a vida vai passando no vazio/ Estou com tudo a flutuar no rio esperando a resposta ao que chamo de amor”.

Enfim, não escolha enfrentar a escuridão sem o tal farol da arte. Com luz, fica tudo mais claro. Mais iluminado. Mais bonito.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 03/04/2016

Dia da mentira

Hoje, é primeiro de abril. Dia da mentira. Eu ia pesquisar a razão dessa data ter se estabelecido como dia da mentira. Mudei de ideia. Busquei outra. Imaginem se hoje fosse o dia da mentira pelo simples fato de que, em todos os outros dias do ano, ninguém mentisse. Que as mentiras, de hoje, fossem brincadeiras, apenas. Mentiras inocentes. Há mentiras inocentes? Não sei. Só sei que não termos apenas um dia da mentira está fazendo com que as relações fiquem cada vez mais fraturadas. Há desconfianças por todos os lados.

Com razão. Como é difícil saber se o que o outro diz é verdade ou não. Como é difícil separar o correto do errado. A mentira chega sorrateira, disfarçada de boa amiga. Faz um estrago enorme. E parte. Parte as pessoas. Quebra as relações. Quem nos ensina a mentir? Certamente, não nascemos mentindo. Quem ensina a arte da dissimulação? Quanto mal fazem ao mundo os dissimulados. Como saber se o sorriso é ensaiado ou se brota dos sentimentos da alma? Como saber se as lágrimas são uma estratégia ou se, sinceramente, derramam um pouco do pouco de dores que existem em nós? A verdade deve ser dita com cuidado.

Algumas verdades machucam. E, não raro, o que julgamos ser verdade não necessariamente é. Um pouco de cuidado não faz mal a ninguém. Ser verdadeiro é bem diferente de ser dono da verdade. A verdade não gosta de donos. É senhora de si mesma. É luz que consegue revelar os recônditos das relações, das intenções, das estradas que temos de percorrer.

Como seria bom se, apenas hoje, fosse o dia da mentira. Como seria bom se fosse, uma brincadeira apenas. Ingenuidades que não fariam mal. Contraste com outros dias em que apenas a verdade fosse vitoriosa. Gosto de histórias infantis em que o bem vence o mal porque, em algum momento, a verdade aparece e prevalece. Acho mais educativo. Quem sabe seja este um caminho, o da educação, o das histórias que aqueçam vidas. Vidas que resistam às seduções toscas de dissimulados, mentirosos.

Viva a verdade.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 01/04/2016

Domingo de Páscoa

A vida venceu a morte, a liberdade venceu a escravidão, o bem venceu o mal. A Páscoa é a mais importante festa do calendário cristão. Ela reacende as chamas da nossa esperança. Há um sinal que merece ser revisitado. O túmulo está vazio. A vida se apresenta apresentando a paz.

Os barulhos horrendos que tão mal fizeram não foram suficientemente fortes para estancar o som prazeroso do amanhecer único. Era um domingo. Era um dia de festa. Lembravam eles da saída do Egito, do povo que ousou deixar de lado a ração medida da escravidão e partir em busca do incerto. O certo é que acreditavam em uma terra prometida, onde jorrariam alegrias e liberdade. Essa é a Páscoa dos Judeus. A passagem de uma situação para a outra. Seguindo a inspiração de Moisés, não temeram o Mar Vermelho nem o que viria depois.

Jesus morreu um pouco antes dessa festa. Os homens preferiram soltar um criminoso confesso, Barrabás, a libertar o semeador do amor.

Dias difíceis. Judas, o que caminhava com ele, o traiu. Preferiu algum dinheiro e o traiu. Ou talvez tenha se frustrado ao ver que o poder que ele queria não era o mesmo que Jesus pregava. Pedro, o amigo, o discípulo, negou-o três vezes. Fingiu que não o conhecia. Teve medo, certamente. E os outros que o aclamavam tantas vezes se afastaram. Não havia o que fazer. As mulheres, as discriminadas, foram as que acompanharam os seus últimos passos. A cruz e o seu peso. As quedas. A dor. A humilhação. Mas tudo isso foi antes de hoje.

Hoje é Páscoa. A morte já não domina. Ele está vivo. E a sua vida é um convite a que vençamos a morte também. Que morram os orgulhos e as arrogâncias, que morram as avarezas e os pretensões, que morram os julgamentos sem amor. É domingo de Páscoa.

O túmulo já não guarda o seu corpo. Foi pequeno demais. O Amor é grande. Alguns apressados queriam que a vitória ocorresse no Gólgota, o local da crucificação. Imaginavam que com o poder que Jesus tinha de fazer milagres, de curar leprosos, de devolver a vida a Lázaro, de caminhar sobre as águas, de multiplicar os pães, entre tantos outros, Ele poderia soprar e destruir aqueles homens que o matavam.

Destruir? Não! Ele veio para construir. Foi fiel à sua missão até o fim. Bebeu do cálice amargo. Amargou a solidão. E morreu. Morreu para nos ensinar a morrer. E venceu a morte para nos ensinar a, também, vencê-la.

É Páscoa. A vida está de volta. Há esperança, sim. A ponte foi construída. Basta enfrentarmos a sua travessia. Mesmo que calvários cruzem o nosso caminho, serão apenas trechos de uma jornada maior. Não nos acovardemos diante deles. É preciso prosseguir. As feridas só doem por um tempo. A pele tem o poder da recuperação. Na alma, é assim também. Não cultivemos as traições e as chibatadas. Elas ficaram para o ontem e para os dias que o antecederam.

Hoje é Páscoa. Amanhã, também. E, também, depois de amanhã.

Afinal,a vida venceu a morte, a liberdade venceu a escravidão, o bem venceu o mal. Celebremos, pois!

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 27/03/2016

Paixão de Cristo

Hoje é sexta-feira. Sexta-feira Santa. O pregador do amor foi pregado na cruz. Foi humilhado, insultado, desprezado, traído. Deixou de amar? Não. Sua essência é o amor. Amando, venceu a morte e mudou a história.

Havia razões para que o condenassem? Mesmo que não houvesse, quem quer condenar inventa razões. Ele representava algum perigo? Nenhum, mas quem quer o poder espalha perigos e invade tempos serenos com dizeres incorretos. Jesus morreu. Assim estava escrito antes. Profetas falaram de sua vinda. Usaram a expressão “na plenitude dos tempos”. E Jesus veio. Caminhou entre pecadores. Caminhou, também, entre aqueles que não se achavam pecadores – esses eram os mais perigosos.

Falou de um reino diferente do reino que eles conheciam. “Meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que eles me prendessem”. Esteve diante de Pilatos. Pilatos teve medo do povo e, por isso, lavou as mãos. O povo já estava contaminado. Na cruz, Jesus ainda teve tempo de perdoar os que o ofenderam. “Eles não sabem o que fazem”. Ensinou a seus seguidores o valor do perdão, do perdão que liberta: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará…”.

Todas as vezes que revivo a semana santa, emociono-me. Desde a minha infância, tento compreender os que “não sabem o que fazem” e, por isso, optam pelo ódio. Aquele menino que foi educado por um carpinteiro e por uma mãe amorosa, que foi crescendo e vivendo a sua missão, que chamou os pescadores para que se dedicassem a cuidar de homens, aquele menino incomodou. Por quê? Por que a violência? Por que a ausência de compaixão? A celebração da morte de Jesus, a procissão do enterro, as cenas da paixão. É tudo muito tocante. Explicações racionais, não há. O melhor a fazer é saber que também eu sou pecador e aprender com Ele que, mesmo na cruz, não desistiu de amar.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 25/03/2016

Domingo de Ramos

O Domingo de Ramos marca o início da Semana Santa. Uma liturgia riquíssima nos ajuda a celebrar, a reviver, a reapreender com os fatos marcantes da vida de Jesus.

Jesus entra em Jerusalém e é saudado pelo povo. Foi uma comoção. Estavam ansiosos pela sua chegada. O profeta, pensavam alguns; o Filho de Deus, certificavam-se outros. “Hosana ao Filho de Davi” era o coro daquela gente que também acenava com ramos de oliveiras. Alguns jogavam as próprias vestes para que o Messias pudesse passar.

Jesus entra na cidade em um jumento. Há nesse gesto um sentido. Enquanto o cavalo simbolizava, para eles, o poder da guerra, o jumento simbolizava o poder da paz.Jesus chega na cidade como o “príncipe da paz”.

Mas por que aqueles homens o receberam com tanta festa? Por que tamanha euforia? Talvez porque carecessem de um líder, de um inspirador. Ou talvez pela fama que corria toda a região. Do homem bom que fazia milagres, que curava os doentes, que ensinava por meio de parábolas. A curiosidade era muita. O desejo de vê-lo entusiasmava a multidão. Como seria esse homem? O que Ele traria de tão especial?

E, então, a festa. E, então, os gritos eufóricos de que um príncipe ou um rei seriam merecedores.

O que houve com essa multidão que, alguns dias depois, mudou o grito? Estavam eufóricos também. Também faziam barulhos. Mas o som que se ouvia era outro: Crucifica-o! Crucifica-o!

Ora, mas não era o mesmo povo que O queria? Que desejava ouvir as suas histórias? Que aguardava para ser curado pelos seus milagres? O que houve?

Em tão pouco tempo, o “príncipe da paz” havia se transformado em um perigo para os que não compreendiam a sua mensagem. Ele era bom demais. Gostava demais das pessoas, inclusive daquelas de que ninguém gostava muito. Ele não tinha preconceitos. Ele trazia uma nova lei, um novo mandamento. Simples de entender. Difícil de viver. O mandamento do amor. O seu reino era o reino do amor e não o das intrigas, do ódio, do despejar de pedras.

E Jesus foi condenado. Deram ao povo a opção de libertá-lo, mas eles queriam sangue, queriam vê-lo carregando a cruz, caindo, tropeçando, chorando. Mas por que tanta perversidade? O que fez Jesus de tão grave? Nem sabiam dizer, mas foram convencidos pelos homens da lei e pelos líderes religiosos. Mas os homens da lei são capazes de inverter a verdade, de perseguir um inocente, de destruir a vida de alguém? E os líderes religiosos? Por que incitariam o povo para o ódio, para a histeria coletiva, para o desejo nada humano de pregar um homem na cruz.

Não se compadeceram ao verem as lágrimas de Maria, sua mãe? Já não viam mais. Os olhos estavam cegados pela mentira espalhada com sutileza e precisão. Era preciso acabar com o líder, com aquele que invertia a lógica dos poderosos. O menino de Nazaré, feito homem, poderia desconstruir os seus ricos castelos; então, o melhor era eliminá-lo.

É o início de mais uma Semana Santa. Tempo propício para a oração e para o aprendizado. Orar por tempos de paz. E aprender a discernir as vozes. Vozes de ódio serão sempre um perigo. É a paz que nos santifica, que nos une, que nos faz iniciar essa e outras semanas da nossa vida com a disposição para lembrar o maior acontecimento da história: Jesus, o Filho de Deus, a ponte que o Pai nos deu para que pudéssemos conhecer a Eternidade do Amor. Sobre isso, falaremos na semana que vem, na Páscoa, na Ressurreição. Uma santa Semana Santa.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 11/03/2016

Thiago de Mello, os homens e a natureza

São Paulo celebrou, nesta semana, os 90 anos de vida do poeta Thiago de Mello. Vida de poesia. Vida de amor à palavra. Vida plena de significados. Diz o poeta: “Já fiz mais do que podia / Nem sei como foi que fiz. /Muita vez nem quis a vida/ A vida foi quem me quis.” Thiago, o filho da Amazônia. Thiago, o caminhante das florestas. Thiago, o amigo de Pablo Neruda. Sobre o que conversavam os dois poetas? Vidas que se cruzaram nos horrores de suas perseguições, justo eles que perseguiam a beleza estética dos dizeres que inspirariam gerações.

Thiago foi preso, exilado, arrancado de sua selva pela selva humana. Por que os homens têm esses rompantes? De tempos em tempos ou, talvez, em todos os tempos, perversos aparecem como obstáculos da paz. Os poetas nascem em placentas de paz. Não há como deles retirar o vínculo com o que transcende o efêmero. Olham para o alto e do alto lançam cordas de solidariedade aos que tiverem a coragem de subir. De deixar o irrelevante das disputas mesquinhas pelo poder, o irrelevante dos ódios contra o outro por comparações ou competições. O poeta é incorrigivelmente livre.

Thiago escreveu os “Estatutos do homem”, obra prima de relevância permanente. Decretou em parágrafo único: “O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino”. Dizeres que acentuam a disposição para tempos novos, para que recobremos o juízo, os sentidos reais de nosso existir. Somos da selva. Não da que guerreia. Mas da que bebe a água limpa dos rios ainda não poluídos, da que descansa na sombra das árvores ainda não derrubadas, da que canta o canto dos pássaros ainda não aprisionados. A selva que guarda os milagres da vida.

Thiago, um milagre que surge para poetizar os milagres que nos esquecemos de ver. Nas selvas e nas cidades. Mas que há, há.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 11/03/2016