
Recebi uma carta de um homem que, na prisão, leu alguns livros meus. Ao final da carta, antes da assinatura, ele disse que era um dos meus “amigos distantes”. Que não me conhecia pessoalmente, mas imaginava como eu era pelos textos que eu escrevia. A carta me foi entregue em uma palestra. Estava em Minas Gerais e, ao final, sua irmã me entregou a carta. Contou-me que o irmão havia lido muitos livros meus. Que sempre pedia mais um. Que um deles, “O pequeno filósofo”, ele sabia de cor alguns trechos. Aquela confissão encheu-me de alegria. Os livros nascem de nossas mãos, de nossas intenções e ganham vida. Não é possível saber onde eles chegam, que histórias frequentam, que solidões acalentam.
Disse-me ela da recuperação do irmão. As drogas roubaram-lhe a dignidade, enfearam-lhe a vida, mas hoje ele está melhor. Em pouco tempo deixará a prisão e encontrará uma família disposta a acreditar em recomeços. Falamos um pouco mais. Havia outros professores para partilhar da prosa. Guardei com cuidado a carta e, assim que pude, cuidadosamente a li.
Linguagem correta, passeios pelos seus sofrimentos dialogando com personagens que criei. Falou do “abacaxi miúdo”, um triste abacaxi de meu livro “A ética do rei menino”. Falou de minhas cartas. Falou do amor que devoto ao meu pai. E escreveu sobre o seu pai. O sonho de que, um dia, o pai não se envergonhe do filho. Eram algumas páginas em que a vida dele era entregue como uma confissão necessária. Explicou-me que me conheceu por acaso. Um outro presidiário estava lendo um livro meu escrito com o padre Fábio, “Cartas entre amigos”. Ele leu e depois quis ler os outros. Comentou comigo sobre o final de um romance meu e deu sugestões sobre um outro final para um livro infantil que escrevi com Maurício de Sousa.
Gosta ele de finais felizes. O tempo do trancafiamento estava sendo duro. Mas é ainda jovem. Disse que era grato pelo tratamento que recebia. Que ouvia histórias de outros presídios e de seus horrores. Já era duro perder a liberdade. Perder a dignidade seria ainda pior. Ele era bem tratado. Nele, habitavam vários sonhos. Um deles era escrever. Escrever para que outros jovens pudessem fazer escolhas diferentes. O primeiro dia em que experimentou a droga foi para não dizer “não”. Teve medo de não pertencer ao grupo de colegas que ele admirava. Depois quis novamente. Depois teve uma namorada que o levou para festas e nas festas drogou-se como quis. E chegou ao estágio em que já não vivia sem. E teve de buscar dinheiro lícito ou ilícito para honrar os compromissos com os traficantes.
Honrar compromissos? “Justo eu que desonrei minha liberdade e que optei pelos caminhos errados”. Quer ele prevenir os jovens. Dizer que não comecem. Cantar o canto da liberdade que não combina com vícios. Não me pediu nada na carta. Nem ao menos que, concluído o livro, eu o apresentasse a alguma editora. Não deixou sequer o endereço. Realmente o seu único desejo era me dar um presente. E que presente! Fui relendo a sua escritura e agradecendo ao ofício que abracei como vida. Escrever. Escrever com a responsabilidade de quem sabe o poder que tem sua excelência “a palavra”. Palavras que nos conduzem aos derradeiros instantes de decisão.
Somos um somatório de pessoas e livros que nos influenciaram, depositários de emoções alheias que ajudaram a formar as nossas. Na vida ou na literatura, conhecemos amores, vilões e heróis, medrosos e valentes. Nos textos, descobrimos teóricos que debruçaram sobre acontecimentos para neles jogar luz. Para que errássemos menos no futuro, para que compreendêssemos melhor o nosso estar coletivo.
O remetente da carta chama-se Francisco, apenas isso. Francisco, o santo. Francisco, o papa. Francisco, o jovem que, como tantos outros jovens, enfrentou e enfrenta o calvário. Que o desfecho seja feliz, como ele diz que gosta. Que um dia eu entre em uma livraria e encontre um livro de um tal Francisco, meu amigo distante.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 17/04/2016




