Artigos em destaque

Quem criou a lama?

Foi a pergunta que me fiz em meio a um turbilhão que se avolumou sobre tudo que eu podia avistar. Alguns voaram depois do aviso das vozes. Há sons na natureza que poucos conseguem compreender. Até porque não prestam atenção.

Outros, acostumados à liberdade, atingiram velocidades que superaram a lama. Quando cheguei, deram-me um nome. Deram-me um local seguro, um canil ao lado de onde entravam e saíam. Deram-me comida, água. Algum ensaio de carinho. Deram-me a possibilidade de conhecer algumas ruelas que ficavam próximas. Levavam-me, entretanto, amarrado. Tudo para minha segurança. Era assim que diziam. Para que eu não me perdesse.

Onde foi que se perderam?

Os desesperos diante da lama demonstram que se perderam. Que os humanos se perderam. E nós, com eles.

Os meus irmãos criados livres, livremente se foram. Já nós, que servimos para servir, ficamos juntos com a lama. Estão sacrificando as vacas, as mesmas que foram servas, para que não sofram. É isso o que dizem. Devem estar muito preocupados com o sofrimento das vacas e dos bois e dos frangos e de nós, cachorros.

Quem criou a lama?

A paisagem era bonita. Nos vários tons do dia. As montanhas altaneiras não se alteram, descansam soberanas emprestando seu verde. A água nasce limpa. Sem as sujeiras que vão nela depositando. Os rios têm o seu curso. Mudaram o curso. Mudaram novamente. Construíram barragens. Nos rios e nas pessoas.

Vejo o sofrimento nascido das perversidades. O mal mora nos humanos e, disfarçadamente, vai enchendo de lama o que pode. Pode muito.

Eles nos prendem para que possamos dar alguma coisa a eles. Eles se prendem em busca de alguma coisa que nem sabem. E dizem, na sua língua, ditos de ódio. Entre nós, não há ódio. Apenas queremos viver. Apenas nos defendemos. Apenas prosseguimos.

Entre eles, há uma busca de algo que chamam de poder. Uns sobre os outros. O tal dinheiro, o tal lucro, o tal domínio. Eles se matam por isso. E nos matam por prazer.

Por que nos domesticaram? Para nos prenderem quando a lama vem? Há lama por todos os lados. Morreram muitos. Continuarão morrendo. Não a morte que chega no dia que deve chegar. A morte de todos os dias. A morte matada. A morte dos sentimentos. A morte da sensibilidade. A morte da vida.

Eles estão mortos, mesmo quando estão vivos. Nós nos alegramos facilmente. Um alimento bom. Uma água pura. A pureza de um sopro qualquer. Eles, não. Acostumam a terem e, tendo, querem mais. E querendo, destroem outros quereres. E, quando não conseguem, odeiam.

Quem foi que inventou o ódio? E a perversidade?

Gosto do despedir do dia. Porque presto atenção. Gosto dos cheiros que vêm dos verdes. E até dos tons de frio. O calor me incomoda, Nem disso eles sabem. Arrastam-me em dias quentes e me queimam para passear. E de mim esquecem, quando há outros preenchimentos para um tempo sem comando.

Onde estão agora? Onde está o que guardaram? Para onde foram? Para onde irão? Quem são os outros que estão no comando deles?

A água limpa que estava por aqui se foi. Estou sozinho esperando que algo bom possa acontecer.

Por enquanto, ouço apenas a tristeza.

A desnecessária.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 03/02/2019

A bondade e os outros lados

Acabei de celebrar os meus 30 anos de padre.

Meu Deus!, o tempo faz o que quer. Vai escapulindo do seu jeito e, quando percebemos, já se foi. Eu era um jovem de 24 anos quando chorei de emoção ao saber que ali entregava a minha vida para celebrar o Amor todos os dias, para acolher os calvários tantos que chegariam até mim, para transformar ódio em bondade. Quantas cerimônias de despedidas presidi, quantos abraços acolhedores em vidas despedaçadas pelas partidas. Poderia desfilar histórias de mães que enterraram filhos, de mulheres que disseram “adeus” aos maridos, de inconsoladas separações. Estava eu ali, presente. O consolo vem da oração e do afeto. Há momentos em que o melhor é apenas estar. Palavras ditas apressadas não encontram o berço preparado para o nascedouro. A morte e a vida são as matérias-primas de um padre. A fé nos alimenta, e as obras do viver nos garantem autenticidade.

Desde que me lembro de algo desejar, lembro-me do desejo de ser padre. Era muito menino quando, coroinha, tocava os sinos nas celebrações. Gostava de ajudar nas cerimônias, sofria com as dores dos dias santos que antecediam a Páscoa. Adolescente, levava a comunhão aos doentes, ensinava nas catequeses, compartilhava os textos bíblicos. No seminário, ouvia as canções sagradas, antigas ou novas, que nos levavam a um lugar de elevação. A primeira missa, os primeiros afazeres de um padre. As dúvidas. A certeza.

E foi com esse recordar que acordei no dia dos festejos. Uma linda missa. Amigos de tantas paróquias por onde passei. Bispos, padres, pastores. Sempre dialoguei muito bem com outras religiões.

E no almoço, momento das conversas livres, um sentimento estranho foi tomando conta de mim. Vi amigos padres animados com a possibilidade de andarem armados, ouvi discursos preconceituosos, percebi atitudes pouco bondosas com os que são ou pensam diferentes.

Ao meu lado, um pastor mais velho parecia viver as mesmas preocupações. Ficamos em silêncio, ouvindo os desatinos: “Tem que matar mesmo, esses bandidos não têm conserto”. “Essa gente vem à Igreja pedir coisas, acha que é pronto-socorro”. E uma das últimas pérolas foi: “Detesto pobre”.

Uma tristeza foi me fazendo companhia. O velho pastor pegou na minha mão e disse, sem nada dizer, que era assim mesmo, que a nossa fé estava depositada em Deus e não nos homens, que foi isso que lemos nas Sagradas Escrituras e isso que aprendemos.

Depois da troca de olhares, me fortaleci e resolvi dizer que não me agradava o que diziam. Religião não é desligamento, é religação. Um padre mais jovem me interrompeu dizendo que a Igreja já apoiou a pena de morte muitas vezes. E eu expliquei que a Igreja erra e se desculpa pelos erros. Ele insistiu. Eu lembrei que a Igreja também torturou, também abusou de inocentes, também feriu as leis do amor.

Não houve brigas, mas terminei inquieto aquela refeição. Deitei para descansar, olhei para o crucifixo e agradeci. Jesus não teve preconceitos, amou indistintamente. Imagine, naquela época, abraçar um leproso, conversar com uma mulher pecadora, acolher um estrangeiro. É Nele que devo me inspirar.

Dormi e sonhei.

O sonho foi lindo. Voltei a ser criança e minha mãe, que já se foi, levou-me a um jardim de bondades. Havia uma placa e tudo. E as cores serviam para embelezar, e as diferenças para exibir criatividade, e o amor para lembrar a razão pela qual nascemos. Acordei sorrindo. A vida não é um sonho, mas sonhadores fazem toda a diferença. Ao lado da minha cama, alguns textos do Papa Francisco, o homem simples que fala da Casa Comum e do acolhimento.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 20/01/2018