O mergulhar nas emoções

21.11.2021


(Gabriel Chalita)

O ano se passou como seta certeira lançada por um destino rebelde que teimei em acreditar. E você permaneceu vivendo. Eu também.

Notícias suas, tenho em gotas. Não dou espaço para detalhes ainda mais doridos. Palavras não devem ser desperdiçadas, ainda mais quando cortam.

Eu sei que você me deu sinais. E eu fui incompreendendo os dias despertados de um azul lindo ao seu lado. Era beleza demais para aceitações. Era estabilidade demais para uma alma sedenta como a minha.  Desapercebi o que causava, quando causava nos escondidos de outras casas.  E você foi doendo. E dizendo com a dor que não resistiria muito. Eu desacreditei. E prossegui no meu necessário buscar, na minha carência indomável.

Até que um dia, depois de permanecermos deitados sem conciliar o sono, resolvi. Disse a você que você não bastava. Expliquei sobre Camila e, então, arrumei coragem e parti.

Era um dia sem azul e eu não me dei conta. Você chorou abraçada ao nada que te ofereci. Disse algumas palavras entrecortadas por lágrimas e por silêncio. Suplicou que eu desistisse de desistir. Eu prossegui. E saí fechando a porta de uma casa em que moraram tantas histórias nossas, tantas lindas histórias nossas. Você saiu no dia seguinte, pelo que me disseram. 

Eu viajei com Camila e quis não saber de nada.  Você foi viver com uma amiga para amenizar a dor da vida que morreu. E não sei como meu irmão chegou até você e ocupou os vazios.  Não entendi. Falamos pouco. E hoje, pouco sei da sua felicidade.

Camila já não me faz sentir amor. É em você que penso, mas penso que é tarde para pedir perdão. No velório do meu tio, você acenou educada, mas prosseguiu com os braços aconchegando meu irmão. Meu irmão que pouco gostava do meu tio, mas que se fez frágil por você. Por você ou por mim, não sei.

Não sei se é correto um irmão amar o amor do irmão. Disse nossa irmã que ele vive os mais felizes dos dias desde que vocês começaram a viver juntos.  Que se fez um homem romântico. Que te surpreende com constância.

Olho para o meu tio morto e desejo a morte dos desejos que doem em mim.  Meu irmão e eu nunca nos demos bem. Falamos o desejável para a manutenção de alguma civilidade.  Não consegui encontrar o que nele possa interessar a uma mulher tão interessante.  Passo pela casa de vocês e olho com disfarce para a janela que esconde o que vocês sentem. Hoje mesmo, vesti uma blusa tricotada por você. E me senti agasalhado. Busquei algum cheiro do que fomos, mas o tempo retirou. Faço votos de que ele te faça feliz. Choro, enquanto penso o que penso agora. Que ele te faça feliz. Que ele tenha a sabedoria que eu não tive. Que ele perceba que a embarcação rasga o azul dos oceanos com leveza e não com sobressaltos. Triste de mim desacostumado à paz. 

O ano se passou sem você, pela primeira vez, desde que nos juramos eternidade.
Talvez tenha que ser assim. Talvez seja melhor assim eu acreditar. Ou quem sabe nos encontremos novamente…Quem sabe?





 

A vida do outro

Gabriel Chalita

14.11.2021

Sou vendedora de coco e sou visitante cuidadosa da vida do outro. Por aqui, passam histórias que surpreendem pelo incomum.

Comumente, desperto na solidão de uma cama, há muito desacompanhada.  Disso, falo outro dia. Ronaldo acrescentava nada em mim. Fútil nas ideias e tosco nos afetos. Ter companhia por ter, prefiro o aprendizado de conhecer a mim mesma.

Cedo abro minha barraca e preparo os cocos. Que delicadeza da natureza fazer brotar água para brotar alívio nas pessoas! Na dureza de um coco, a suavidade do seu interior. 

Aos poucos, passam por mim pessoas que trazem um pouco do que são. Há os que se aconchegam gentis e demonstram interesse pelo que faço. Há os que falam nada, entorpecidos por aparelhos grudados nos ouvidos a despencar todo tipo de barulho.

Há uma Dona Amélia, que desce, vagarosamente, do seu prédio e vem ver o sol da manhã se alimentando do prazer da água. Conversa leve a dela. Aposentada e com os filhos já crescidos, gasta a vida nos livros e em outros prazeres que exigem mais do intelecto que do físico. Fala ela das peças de teatro, de algum filme, de algum conhecer novo. Em alguns fins de semana, os netos vêm junto. E se sentam com ela para saborear o convívio. Com delicadeza, pede que deixem os olhos nos olhos das pessoas que conversam e não nas telas. E eles aceitam.

Juliana, uma das netas, comentava sobre um fim de relacionamento entre dois artistas. Quis saber a avó se eram pessoas do seu convívio. A neta sorriu, clarificando que não. Felipe, o neto mais velho, falou de uma dieta que aprendeu com uma influencer das redes. A avó perguntou se era médica ou nutricionista. Ele disse não saber. Clara, a outra neta, explicou dos costumes da que dá as dicas, das suas viagens, das lojas onde compra suas roupas, dos restaurantes que frequenta. 

A avó não é das que interrompe narrativas. Ouviu até o ponto final. E, depois, falou.
Falou sobre o estranho mundo em que é mais comum saber da vida do outro do que da própria vida. Contou uma história bonita nascida nas mitologias. Eu me entretive tanto que esqueci os outros fregueses. Adormeci as preocupações ouvindo a velha senhora contar a história de Pandora e de sua excessiva curiosidade. Ao abrir a caixa, permitiu que os males fossem ocupando espaços no mundo.  João, que é corredor e que descansa sempre dos seus exercícios na minha barraca, também ficou ouvindo. E um sol bonito atravessava  uma velha figueira que nos cedia sombra e iluminava os brancos cabelos de Dona Amélia.

Fui atender um jovem com som alto e inquietude nos gestos e perdi um pedaço da história. Entendi que, no final da caixa, havia restado a esperança. 

Os netos estavam sentados no chão, ao lado da cadeira da avó. Mariana, a neta mais nova, descansava a cabeça, enquanto tomava sem pressa a água de coco. Um homem caminhava brigando com alguém ao celular. Um outro trombou por ficar olhando na tela. Bateu em uma árvore e riu. E prosseguiu sem notar as flores que já desabrochavam primaveras.

Cecília é outra freguesa que gosta das conversas, mas que não se incomoda em reclamar. Na minha barraca, conheceu Dona Amélia e se aninha por perto toda vez que ela chega. 

O pôr do sol de onde fico é incansavelmente lindo. Só depois que ele se vai é que me vou. No ônibus de volta para casa, tenho o costume de olhar para as pessoas e imaginar a vida delas. Das razões para a tristeza ou para a felicidade. Às vezes, rio sozinha das minhas conclusões. Antes, era mais fácil conversar. Hoje, estão todos vivendo mundos que criaram. Não sou contra a tecnologia. Nem poderia ser, entendo pouco. Sou contra os desperdícios.

Enquanto o ônibus cruza a cidade, vejo praças e árvores, vejo gente, vejo vida. E, quando desço, caminho observando o mundo de pedras e de flores que se apresenta a quem está disposto. Vez em quando, tenho disposição para ir ao bar com cantoria do Zé Raimundo, que fica a duas quadras de casa. E na música enxergo a vida que dança quando entendemos.

Sou vendedora de coco e sei que o que alimenta é o que está dentro. O que há fora, eu apenas visito, com cuidado. 

O tempo aliado ou o tempo devorador?

07.11.2021

Gabriel Chalita

O relógio explica que é preciso deixar os receios e voltar a viver.

É manhã de um dia que se seguiu a tantos outros e que traz a obrigação do reinício.
Sou professor. E professor alfabetizador. Na minha leve opinião, a alfabetização é uma das maiores aventuras humanas. A alfabetização me leva à leitura, do mundo e das pessoas. Do texto. Ler é percorrer outros imaginários. Ler é um entranhamento fascinante de histórias nascidas de mentes generosamente leais à literatura. Alfabetizo para tirar portas incômodas do cenário vivo e mutante do que se deve ler.

Sou um ser em construção e as experiências narradas por tantos outros me servem de cimento firme na formação da minha linguagem, do meu caráter. Uma obra nascida de um escritor, de uma escritora, provoca conexões entre as tantas regiões que habitam o humano. O imaginário do pensamento e da emoção. A ampliação dos repertórios que ampliam as vidas em novas possibilidades. A leitura oferece inteligência, criatividade, empatia, compaixão.

Lembro-me  de uma professora da universidade que, vez ou outra, fechava os olhos quando reverenciava uma personagem nascida de um autor. Autorizava ela as emoções reais depois dos embates ficcionais no pensamento. Dialogavam, assim, razão e coração.  Contava que, na Grécia Antiga, havia avisos nos portais que davam acesso às bibliotecas, com a advertência de que estavam prestes a adentrar um local de cura da alma.

Minha alma está em êxtase. Palavra que gosto muito e que me significa um êxodo, também. A alegria que me preenche faz com que eu saia de mim mesmo em direção ao outro. E, por isso, sou professor. E, por isso, professo a crença na bondade, na beleza e na justiça. Sou semeador de tempos novos. E, se encontro terrenos resistentes, resisto a desistir. E prossigo alimentando minha esperança de atitude.

O relógio explica que é preciso prosseguir pensando, enquanto caminho para a escola que fica perto de onde moro. Na escola, o relógio será novamente visto por crianças que deixaram os tempos das pausas. Nos sons da memória que ressoam em mim, vem a imagem de uma professora Helena que, nas infâncias da minha vida, entrou na sala de aula e confessou sua consciência de saber o seu lugar no mundo: “Finalmente as férias terminaram”. Em mim, ecoou como “Eu amo vocês” ou “Não há nada de mais significativo na minha vida do que estar aqui, com vocês, exercendo o meu ofício de ensinar”. 

Desta vez, as pausas não foram de um ou alguns meses. Não foram férias. Foram períodos de medo, de incertezas, de reinvenções, de convivências complexas em lares que deveriam oferecer amor. E,  agora, estamos voltando.  Há receios em mim. O que fazer com os tempos desperdiçados? Foram tempos desperdiçados ou tempos vividos?  Não gosto de brigar com o tempo, até porque sei que, se me entregar à insistência, sairei derrotado. 

Prefiro ter o tempo como um aliado, não como um devorador. O tempo me alivia dores, me faz compreender amores, me ensina a resistir e até me oferece, no rosto, algumas rugas e, na alma, muitas cicatrizes. 

Vou entrar na sala de aula sem a ânsia de atropelar o aconchego. Sei que o que tenho de fazer, por primeiro, é oferecer presença, é relembrar afetos, é celebrar o encontro.
Se me dessem a oportunidade de mudar de profissão, sorriria agradecendo e, agradecendo, diria que o que experimento vai além dos entraves que me perturbam.

Perturbado fico, quando não posso ensinar, quando desisto de aprender. Isso, não. Já expliquei ao tempo que quero prosseguir semeando. Que quando chegar a hora de experimentar o mistério, quero ainda sentar um pouquinho e ler algum bilhete deixado por um aluno me dizendo da felicidade de viver. Um bilhete, há tempos, descansado em alguns dos tantos livros que enfeitam a minha alma ao lado da cama em que descanso a vida. 
 

Cuidado para não pisar

Gabriel Chalita

31.10.2021

Acordei o dia antes de o dia me acordar e saí na ânsia de movimentar o mundo.

Os sonhos, da noite curta, foram valentes e me trouxeram cenas que não consigo reproduzir. Enquanto caminho, penso em por que sonhamos. Tento alguma lembrança de alguma explicação de algum significado.

É bom ver o nascer do dia caminhando. E, caminhando, vi uma criança dizendo, da calçada onde vive, a frase que me estacionou. “Senhor, cuidado para não pisar, é minha mãe, ela não está bem”.

O senhor que andava distraído, um pouco à minha frente, cambaleou e prosseguiu, sem nada dizer, sem nada fazer. Bêbado de alguma desilusão, prosseguiu desequilibrando. 

Olhei para o menino e quis saber. Com a coragem de um pequeno protetor, explicou a mãe, a pobreza, a doença, o abandono. 
Morar na rua não é uma opção. É uma ausência. De olhos. De mãos. De pensamento.

Sentei com eles e convenci uma atitude. A mãe, entre acordada e distante, primeiro disse que dali não se levantaria. Eu concordei e apenas pedi autorização para prosseguir com eles, conversando. Ela fechou os olhos sem dizer. O menino respondeu pela família: “Pode sim”, e prosseguiu: “Espera, deixa eu colocar esse papelão para o senhor ficar mais confortável”. Me movi para cima e ele cuidou do meu espaço.

O menino se chama Rafael, como o anjo da cura, e a mãe se chama Teresinha, como a santa que pediu a Deus que, quando morresse, pudesse derramar sobre a terra uma chuva de pétalas de rosa.

Em frente à calçada em que estávamos, uma grade alta protegia um roseiral. E, por trás, uma casa de gigantesco luxo.  Rafael disse da doença da mãe, “A cabeça não ajuda a melhorar o corpo”. Perguntei se estavam com fome. Ele olhou para o longe. Imaginei todas as fomes que eles deviam estar. Disse eu da minha fome e os convidei para comer comigo. A padaria estava a alguns passos. Ela disse ‘não’. Ele disse nada.

Olhei para o menino e me vi menino, também. Infância feliz a minha. E a dele?
A frase “Cuidado para não pisar” foi ganhando outros significados em mim. Em quem pisamos? Por que pisamos? Por que pesamos sobre o outro? Por que desrespeitamos a humana necessidade de tratarmos o outro com cuidado?

Levantei e encontrei na padaria o que queria para aquele instante. Comemos os três, na calçada, o que, apenas naquele instante, nos alimentou. E depois?

Fui com cuidado conversando. E, com cuidado, falando da minha mãe e de algumas doenças que foram curadas quando ela deixou. Teresinha parecia um pouco mais confiante no que eu dizia. E, algum tempo depois, ela autorizou alguma ajuda. A Santa Casa compreendeu o seu estado e a recebeu sem muitas interrogações.  Rafael, com as mãozinhas miúdas, passava a mão pelos cabelos da mãe.

Por uma manhã, esqueci os problemas todos do mundo que carregava em mim. Por uma manhã, despistei os pensamentos pequenos que nos reduzem ao egoísmo e à luta insana por desnecessárias vitórias. Éramos nós três em uma comunhão de intenções corretas. 

Alguns pensamentos tentavam adiantar o que viria depois. O menino não estava na escola. Eles não tinham onde morar. Ela temia os abrigos e as pessoas, já foi machucada demais pela vida.  Tentei desligar o que me roubava a preciosidade daquele momento.  

Já vi muito gente na rua e tive receios. A coragem daquele dia veio da força de um menino defendendo sua mãe. A coragem daquele dia veio de uma cura da minha alma proporcionada por um anjo que me permitiu voltar a prestar atenção ao que há de mais bonito no existir humano, o exercício do cuidar.

Os buracos do alambrado

24.10.2021

Gabriel Chalita

O dia havia se espreguiçado além do costumeiro. Fiquei na cama rodopiando passados. Sou uma mulher do presente, mas, vez ou outra, me entrego à saudade.

O tempo é uma costura de encontros e, então, as descosturas. O tempo é um tecer de esperanças e, então, a dor. O tempo é o que é. 

Sentada, aguardando uma amiga em um restaurante rente a um enorme campo verde, vejo o alambrado. Vejo e penso o alambrado. As impossibilidades da passagem. O que está do lado de cá, do lado de cá está. E o mesmo para o lado de lá. Vejo alguns animais curiosos cheirando o que não podem ter. Cheiro o passado pelos buracos do alambrado da minha alma.

Hoje, faz um ano que meu marido se foi.
Não sei se as datas desconstruidoras de felicidade devem ser lembradas. Mas mando nada nas lembranças que tenho. Penso em Lara, minha filha, e no pai que não a cultiva. Penso nos que não se importam com os descompromissos com o amor. Penso nos que descumprem a promessa do viver acompanhado. 

O sol é mais quente no meio do dia.  Já passei do meio da vida. Certamente, já passei. A quentura em mim prossegue nos ódios que ainda não superei, nas imperfeições que me acompanharão até o último suspiro e no amor que é como água que bebo e que me nutre, enquanto aguardo. 

Aguardo uma amiga para o almoço.  Aguardar o fim sem pensar no fim é mais prudente na ventura da vida. Minha mãe só soube sobre o próprio pai aos 80 anos de idade. Súbito, uma antiga vizinha contou. Soube ela há tempos e, há tempos, rascunhou coragem para entregar a carta do que foi algum ontem. O que disse a si minha avó, quando nada disse aos outros o que sofreu? Eram outros tempos, e as paixões proibidas pecavam mais.

Há um barulho na mesa ao lado. Alguma reclamação fora do tom. Um prato que não veio como queriam. Sei nada do que quero. Decidi, depois de Ayrton, viver sem ninguém. Desfruto do privilégio de usufruir da aposentadoria e de alguns proventos de família.

Por que minha avó não contou a história verdadeira à sua filha? Morreu com os segredos. Quando minha mãe soube a história do pai, calou sobre o assunto. Ouviu. Disse nada. E pediu que abrissem a janela. Era, também, o meio de um dia quente.

Reparo nos animais do lado de lá do alambrado e me preocupo se há água. Olho para o relógio mais de uma vez, enquanto aguardo. Sophia tem o hábito do atraso. 
Mas hoje estou sem pressa de viver. 

Divago decidindo o que comer. Algumas decisões da vida cabem a mim, outras cabem a mim aceitar. Se fosse meu o espaço separado pelo alambrado, teria já consertado os buracos. Ou não. Em um deles, descansa um pássaro antes de voltar ao necessário voo.

A dor dos animais

17.10.2021

Gabriel Chalita

Do deserto, recebo notícias de um amigo.
Olha ele nos olhos de um camelo, usado como atração turística. Um homem gordo de risadas sobe sobre o animal cansado que emite sons ao desdobrar os joelhos e levantar com o peso.

Em um lugar de neve, recebo notícias de outro amigo. Fala da dor de ver os chicotes em cachorros que fazem as vezes de renas e puxam trenós nos gelos onde turistas fotografam a si mesmos.

Faz frio no coração da humanidade que habita a mesma casa que outros seres vivos e não compreende a dor que é capaz de causar. Há um deserto nas consciências que alimentam o próprio prazer no sofrimento dos outros. Os chicotes que retiram sangue, os cubículos em que alguns são criados para a fome obsessiva de si, própria  dos homens.

Pobres pintinhos machos descartados de primeira. Caçadores se alvoram para atingir suas presas. Posam com o troféu da morte e riem as perversidades como vitórias de um dia bom. Um dia bom seria se caçassem a si mesmos, as funduras de si mesmos, as viagens necessárias pelos nossos interiores que nos fazem compreender as escolhas que fazemos.

A perversidade é um hábito. Não sei de onde veio, mas é um hábito. Quem é insensível com animais é, também, insensível com humanos. Ainda criança, chorei ouvindo a canção de Luiz Gonzaga, “Tudo em vorta é só beleza / Sol de Abril e a mata em frô / Mas Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, ai, canta de dor”. 

É possível furar os olhos de um pássaro que, segundo dizem, canta mais bonito à noite, para que seja sempre noite nele? Vi, mais de uma vez, cenas de abandono de animais. Um cachorro, uma estrada e uma partida. O animal aturdido correndo atrás do carro imaginando algum engano. Enganados estamos nós ao não nos incomodarmos.

Vez ou outra, uma grife anuncia que não usará mais animais para suas confecções. Confeccionemos um outro estilo de vida. As empresas de cosméticos têm sofisticados aparatos tecnológicos, por que algumas teimam em fazer testes em animais? 

Enquanto escrevo, Tales, Serena e Princesa reclamam atenção. Paro um pouco, acaricio seus pedidos e volto. Agradecidos, abanam os rabinhos e adormecem os três ao meu lado. Olho para a tela e para eles. A tela só tem vida porque dou vida a ela com as palavras que nascem de mim. Já eles têm vidas que ressignificam vidas. Serena, ontem, deitou no colo da minha tia e espantou uma tristeza que veio sem convites. Princesa agradece o passeio, e Tales se diverte com um jogar de bolas e um depositar de afetos. 

No interior onde nasci, os passarinhos amanheciam o dia cantando. Sem os olhos furados. Sem as gaiolas egoístas. O mundo vem nos poluindo de objetos descartáveis. Objetos que não estabelecem relações afetivas. E, sem afetos, nos perdemos e nos fazemos sociedades cruéis e doentes.  Tenho saudade do tempo das desobrigações em que um dia de sol era para se nadar em uma cachoeira limpa, e um dia de chuva era para deitar no colo da minha avó e ouvir histórias. Desde cedo, me encantei lendo Clarice e suas impressões do banho de mar. Tão menina, tão desnecessária de outras riquezas. 

Vou passear com os três depois de colocar o ponto final nesse texto. E vou observar, com ainda mais cuidado, a vida que vejo e que passa por mim, e em mim, todos os preciosos dias. Agradeço aos que me ensinaram a romper os desertos e a frieza e a encontrar beleza em cada respiração desse planeta tão lindo que ganhei de presente ao nascer. 

A dor dos animais dói, também, em mim!

O barulho da porta

10.10.2021

Gabriel Chalita

O sono dá sinais de falência e os incômodos pensamentos assustam minha paz. Viver de passado é o que eu nunca quis. Viver de brigar com o que fiquei sabendo é desconhecer o viver. Mas e quando o passado diz o hoje?

Ouço o barulho da porta. Não sei se é Bernardo ou Joaquim. Meus filhos, embora crescidos, ainda moram aqui. Virgínia dorme ao meu lado sem as perguntas que me impedem dormir. É mãe. É protetora inconfessa das erráticas escolhas. Sou rabiscado por textos diversos que me trazem nada das explicações do existir. Por que são tão diferentes? Criados pelos mesmos pais, com os mesmos afetos, na mesma casa, com as mesmas condições de escreverem o certo.

Joaquim é dissimulado. E isso me dói. Faz das trapaças um trampolim para o sucesso. No pulo vazio, encontra-se até alguma suposta vitória, algum dinheiro, algum imerecido reconhecimento. Leio em seus pensamentos a perversidade de não se preocupar com a dor que causa aos outros. E sei que ele percebe o que percebo. Então,  ri gentilezas e fala inverdades como compensações ao que devo esquecer. Não esqueço. Até porque me culpo por algum descuido dos seus primeiros passos, onde tudo é mais fácil, onde tudo é mais complicado. 

Bernardo é um homem casado com a generosidade. É verdadeiro até nas derrotas. Assume para si a responsabilidade de melhorar o mundo. Abre as portas para que outros entrem na casa necessária das oportunidades. Dá de si sem barulhos, sem publicidades. Apenas ajuda na carpintaria de esculpir felicidades.

Falo não como pai, mas como observador da fascinante ventura de viver atento. Virgínia diz o certo, não se comparam os filhos. O incerto é, entretanto, o nascimento do mal. Ouço em Joaquim o prazer de destruir alguém, a trama que deu certo na inverdade que grudou, nas lágrimas da injustiça que impediram sonos bons. Diz ele que é da sua profissão. Que a vida é uma batalha. Que os fracos devem conviver com as derrotas e não reclamar dos que vencem. Entende nada ele. Lembro-me de Machado que, também, tinha Joaquim como primeiro nome: “Ao vencedor, as batatas”.

Bernardo é diferente e é, por isso, vitorioso. Tudo dá certo com ele e a paz que ele bebe nos aproxima cada vez mais. Ontem mesmo, ele narrou uma história de arrancar lágrimas. Sem invenções desnecessárias. A riqueza da vida está nos detalhes verdadeiros da vida. Das vidas que se encontram, que se aquecem. Bernardo fala de amor com os gestos. 

Falam pouco os dois, o que entristece Virgínia. Nas diferenças, as palavras foram encontrando os seus cantos. Joaquim fala muito de si e fala alto e mente conquistas.
Bernardo silenciou, há tempo, os egoísmos e, serenamente, percorre os embates sem se debater em estranhamentos.

Por que alguém escreveu a história de Caim e Abel? Como foi que a inveja foi nascendo e foi matando? Joaquim diz mal do irmão. Vive de memórias construídas. 
Bernardo fala nada de Joaquim. Olha com piedade o atormentado irmão. Um dia justificou a mim o cansaço. Entregou os pontos. “É mais fácil ajudar o mundo do que o próprio irmão?”, foi a pergunta da mãe. Ele sorriu silêncios. Já tentou de tudo.

Viro na cama e abraço minha mulher. E acaricio seus cabelos. Amo os dois. Os dois são filhos meus. Sementes que plantei na humanidade. O amor, entretanto, não me retira as lentes da consciência. Em algum momento, errei eu ou alguém errou. Não sei.  Sei que a porta que se abre barulha em mim sons que não controlo. Não sou dono do mundo nem de ninguém nem , ao menos,  dos meus pensamentos que teimam em prosseguir pensando. 
 

O barulho da porta

10.10.2021

Gabriel Chalita

O sono dá sinais de falência e os incômodos pensamentos assustam minha paz. Viver de passado é o que eu nunca quis. Viver de brigar com o que fiquei sabendo é desconhecer o viver. Mas e quando o passado diz o hoje?

Ouço o barulho da porta. Não sei se é Bernardo ou Joaquim. Meus filhos, embora crescidos, ainda moram aqui. Virgínia dorme ao meu lado sem as perguntas que me impedem dormir. É mãe. É protetora inconfessa das erráticas escolhas. Sou rabiscado por textos diversos que me trazem nada das explicações do existir. Por que são tão diferentes? Criados pelos mesmos pais, com os mesmos afetos, na mesma casa, com as mesmas condições de escreverem o certo.

Joaquim é dissimulado. E isso me dói. Faz das trapaças um trampolim para o sucesso. No pulo vazio, encontra-se até alguma suposta vitória, algum dinheiro, algum imerecido reconhecimento. Leio em seus pensamentos a perversidade de não se preocupar com a dor que causa aos outros. E sei que ele percebe o que percebo. Então,  ri gentilezas e fala inverdades como compensações ao que devo esquecer. Não esqueço. Até porque me culpo por algum descuido dos seus primeiros passos, onde tudo é mais fácil, onde tudo é mais complicado. 

Bernardo é um homem casado com a generosidade. É verdadeiro até nas derrotas. Assume para si a responsabilidade de melhorar o mundo. Abre as portas para que outros entrem na casa necessária das oportunidades. Dá de si sem barulhos, sem publicidades. Apenas ajuda na carpintaria de esculpir felicidades.

Falo não como pai, mas como observador da fascinante ventura de viver atento. Virgínia diz o certo, não se comparam os filhos. O incerto é, entretanto, o nascimento do mal. Ouço em Joaquim o prazer de destruir alguém, a trama que deu certo na inverdade que grudou, nas lágrimas da injustiça que impediram sonos bons. Diz ele que é da sua profissão. Que a vida é uma batalha. Que os fracos devem conviver com as derrotas e não reclamar dos que vencem. Entende nada ele. Lembro-me de Machado que, também, tinha Joaquim como primeiro nome: “Ao vencedor, as batatas”.

Bernardo é diferente e é, por isso, vitorioso. Tudo dá certo com ele e a paz que ele bebe nos aproxima cada vez mais. Ontem mesmo, ele narrou uma história de arrancar lágrimas. Sem invenções desnecessárias. A riqueza da vida está nos detalhes verdadeiros da vida. Das vidas que se encontram, que se aquecem. Bernardo fala de amor com os gestos. 

Falam pouco os dois, o que entristece Virgínia. Nas diferenças, as palavras foram encontrando os seus cantos. Joaquim fala muito de si e fala alto e mente conquistas.
Bernardo silenciou, há tempo, os egoísmos e, serenamente, percorre os embates sem se debater em estranhamentos.

Por que alguém escreveu a história de Caim e Abel? Como foi que a inveja foi nascendo e foi matando? Joaquim diz mal do irmão. Vive de memórias construídas. 
Bernardo fala nada de Joaquim. Olha com piedade o atormentado irmão. Um dia justificou a mim o cansaço. Entregou os pontos. “É mais fácil ajudar o mundo do que o próprio irmão?”, foi a pergunta da mãe. Ele sorriu silêncios. Já tentou de tudo.

Viro na cama e abraço minha mulher. E acaricio seus cabelos. Amo os dois. Os dois são filhos meus. Sementes que plantei na humanidade. O amor, entretanto, não me retira as lentes da consciência. Em algum momento, errei eu ou alguém errou. Não sei.  Sei que a porta que se abre barulha em mim sons que não controlo. Não sou dono do mundo nem de ninguém nem , ao menos,  dos meus pensamentos que teimam em prosseguir pensando. 
 

Novamente uma estrela

03.10.2021

Gabriel Chalita

O badalar preguiçoso do sino da Igreja avisa que é sobre morte. Esse ano a primavera resolveu descansar. E, então, o frio prolongado do inverno impediu renascimentos. 

Foi assim que acordei. Triste de um desligar durante o dia. Não é sempre que durmo à tarde. Os ventos daquele setembro pareciam excessivamente desnecessários. Olhei para a Estela, que trabalha comigo, e compreendi o meu mal-estar por não estar ela vivendo o mesmo luto que eu. 

Faz alguns dias, recolhi as falas. Reservei a mim as minhas ideias e o meu vazio. A memória, caprichosa, criava textos com exclamações. Viver sem Alberto era espaço não imaginado até pouco tempo. Foi em um meio tom, entre o despedir do dia e o anoitecer, que ele levou o que faltava e foi morar com a inominada. Era ela conhecida de frequentar nossa casa. Era ela bastante limitada nos comentários sobre o viver. Fui eu que errei ao não perceber que as fingidas ingenuidades têm sua importância.

Alberto vive com ela do outro lado da Igreja. Ouvem o mesmo badalar do sino que ouço. Devem saber que tratam de falecimento as tristezas do sino de hoje. 

Não tivemos filhos. Melhor. Não tivemos tempo de aquecer a lamparina do futuro com os chamegos que desperdiçamos.
Sempre fui uma mulher do trabalho. Enfermeira pela convicção dos alívios que minhas mãos trazem ao mundo. Desdigo pessimismos e devolvo sorriso aos outros. A mim, cultivo a dor do abandono, da traição, da troca.

Estela, enquanto varre o quintal, sorri de algum pensamento. Pergunto. Responde nada. Apenas sorri. Abandonada, também, pelo marido, Estela vive de cuidar dos filhos, de mim, e da alegria de estar viva.

O enterro passa ao longe. Cidade pequena é possível saber quem vai e quem chega.
Na minha idade, tenho medo de não mais arder por amor. Nem sei se amor arde. Sei que arde o pensamento que pensa no que faz o amor, quando faz amor em outra cama.

Já pensei em incendiar a casa deles. Já assisti às labaredas consumindo suas mentes arrependidas do que causaram. Fiz nada. Nasci para cuidar. O resto limpo quando vem ao pensamento.

Estela, percebendo o meu vazio, me convidou para ir à padaria. Sem resistência, aceitei. Insistiu que fôssemos pela praia, carregando as chinelas em nossas mãos.
O infinito do mar venta energias e reacende vidas. Foi quando vimos um braço de uma estrela-do-mar. Foi quando Estela explicou de sua capacidade regenerativa. Quando perdem um braço, são capazes de ter novamente o braço perdido. E o braço perdido consegue ser uma outra estrela-do-mar, inteira. Chorei com a explicação. Ela prosseguiu ensinando que, se compreendermos que fazemos parte da natureza, a natureza regenerará em nós as partes perdidas.

O silêncio foi nos acompanhando por mais alguns passos, enquanto as águas se atiravam em nossos pés. Era um dia de mar calmo, era um dia de mar explicativo. Olhei, com profunda admiração, para a simplicidade de Estela. Ela, cortada por um marido violento, se refez. Ela, sofrida pela traição, se refez. Ela, sozinha para criar os filhos, se fez a estrela que é hoje. Bondosa. Não há brilho maior do que resplandecer bondades.

Uma paz explicou que eu estava errada, primaveras não descansam. Inteiras, limpamos a areia dos pés e entramos na padaria do João Antônio. Ele olhou de um jeito bom. Disse que era bom quando eu ia.
Sorri desajeitada. Era ele um pouco mais novo do que eu, viúvo, jeitoso com os dizeres. Era alto e forte. Já havia me olhado, outras vezes, e eu desviado. Por que o trancafiamento? E, então, percebi os meus pensamentos se limpando dos ontens. Nos convidamos para um banho de mar. Amanhã. 

Estela acenou com a cabeça, feliz, enquanto fazia o pagamento do pão, da manteiga e do punhado de queijo que poderíamos usar para um café acompanhado. 
 

Miguel e Maria

26.09.2021

Gabriel Chalita

Que bom que você chegou, Maria! Os dias aqui não são dias. Então, não faz tanto tempo que nos despedimos. O tempo aqui não é o tempo. E os espaços são todos.  Aqui, Maria, somos nós. E é o que basta. 
Tudo que não era nosso ficou e você sabe que não faz falta.

Antes de você chegar, Maria, você já era daqui. Os sinais da sua paz eram sinais daqui para acalmar os arroubos dos que não compreendem o que fica e o que vai.
Sentada na mesa da cozinha, você brincava de limpar o mundo no dobrar das sacolas que traziam a comida.  Brincava de disfarçar o tempo organizando a vida.

Quando nos conhecemos, você, tão jovem, já emprestava mansidão. Eu era mais agitado. Impressionava você decorando os nomes das ruas. E os seus significados. 
Você deu significado a mim, Maria. Dormir e acordar com você era uma rua sem fim de felicidade. E vieram os nossos filhos. E uma filha se foi e nos deixou partidos. Eu, em pedaços. Você, inteira.  Seus olhos lacrimejavam saudade e acendiam a fé de que os mistérios são véus e não desaparecimentos.

Regina, nossa filha,  está aqui, Maria. E, também, os outros.  Os seus olhos tão abertos prosseguirão enxergando. O corpo descansa, e a alma voa no interior da bondade perfeita. E de nada mais você precisa. E de nada mais preciso eu. 

A bondade ilumina o mundo, todos os dias, mas há os que desacreditam. E, então, lançam gritos de inumanidades. A bondade prossegue sem retroceder. É água limpa oferecida a quem percebe, a quem se dispõe a se alimentar e a alimentar os seus irmãos de cuidado. Você não descuidou de ninguém, Maria. Seu nome já foi um prenúncio. Do silêncio. Da prontidão. Dos ouvidos atentos ao clamor de uma humanidade melhor.

Foram quase cem anos de presença. De um dormir e acordar acompanhada da disposição de não desperdiçar amor. É o que fica, Maria. É só o que fica. Você se lembra dos poderes que eu tive? Das homenagens? Dos cargos? Tudo tão distante daqui! Tudo inventado para distrair. A distração também faz parte. Só que parte em pedaços o que deveria ser inteiro. E é assim que nos olhamos no espelho da vaidade e não enxergamos ninguém. Porque ali ninguém mora.

Você dizia, no silêncio,  que me amava sem os enfeites. E eu compreendia. E agora, Maria, estamos aqui. Nos completando, novamente, no completo do existir.  Nada mais é preciso dizer. Basta sentir. Venha dançar comigo, Maria, a dança que nunca acaba. Ouça a canção do encontro. Toque na imaterial memória do que sempre fomos. Prove da matéria-prima de que fomos feitos. 

Sabe, Maria, você sempre soube. Você nunca duvidou. Os seus ditos diziam, antes, o que há por aqui. Sem exigir concordâncias. Cada um tem o seu tempo do acreditar.  Aqui o tempo é inteiro. Ah, se soubessem por lá o que é a felicidade, as águas do esquecimento fariam perdoar os desacertos e a liberdade seria a compreensão do que fica quando tudo passa. E tudo passa!

Que bom que você chegou, Maria! Por aqui, só fica o que permanece.