A dor dos animais

17.10.2021

Gabriel Chalita

Do deserto, recebo notícias de um amigo.
Olha ele nos olhos de um camelo, usado como atração turística. Um homem gordo de risadas sobe sobre o animal cansado que emite sons ao desdobrar os joelhos e levantar com o peso.

Em um lugar de neve, recebo notícias de outro amigo. Fala da dor de ver os chicotes em cachorros que fazem as vezes de renas e puxam trenós nos gelos onde turistas fotografam a si mesmos.

Faz frio no coração da humanidade que habita a mesma casa que outros seres vivos e não compreende a dor que é capaz de causar. Há um deserto nas consciências que alimentam o próprio prazer no sofrimento dos outros. Os chicotes que retiram sangue, os cubículos em que alguns são criados para a fome obsessiva de si, própria  dos homens.

Pobres pintinhos machos descartados de primeira. Caçadores se alvoram para atingir suas presas. Posam com o troféu da morte e riem as perversidades como vitórias de um dia bom. Um dia bom seria se caçassem a si mesmos, as funduras de si mesmos, as viagens necessárias pelos nossos interiores que nos fazem compreender as escolhas que fazemos.

A perversidade é um hábito. Não sei de onde veio, mas é um hábito. Quem é insensível com animais é, também, insensível com humanos. Ainda criança, chorei ouvindo a canção de Luiz Gonzaga, “Tudo em vorta é só beleza / Sol de Abril e a mata em frô / Mas Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, ai, canta de dor”. 

É possível furar os olhos de um pássaro que, segundo dizem, canta mais bonito à noite, para que seja sempre noite nele? Vi, mais de uma vez, cenas de abandono de animais. Um cachorro, uma estrada e uma partida. O animal aturdido correndo atrás do carro imaginando algum engano. Enganados estamos nós ao não nos incomodarmos.

Vez ou outra, uma grife anuncia que não usará mais animais para suas confecções. Confeccionemos um outro estilo de vida. As empresas de cosméticos têm sofisticados aparatos tecnológicos, por que algumas teimam em fazer testes em animais? 

Enquanto escrevo, Tales, Serena e Princesa reclamam atenção. Paro um pouco, acaricio seus pedidos e volto. Agradecidos, abanam os rabinhos e adormecem os três ao meu lado. Olho para a tela e para eles. A tela só tem vida porque dou vida a ela com as palavras que nascem de mim. Já eles têm vidas que ressignificam vidas. Serena, ontem, deitou no colo da minha tia e espantou uma tristeza que veio sem convites. Princesa agradece o passeio, e Tales se diverte com um jogar de bolas e um depositar de afetos. 

No interior onde nasci, os passarinhos amanheciam o dia cantando. Sem os olhos furados. Sem as gaiolas egoístas. O mundo vem nos poluindo de objetos descartáveis. Objetos que não estabelecem relações afetivas. E, sem afetos, nos perdemos e nos fazemos sociedades cruéis e doentes.  Tenho saudade do tempo das desobrigações em que um dia de sol era para se nadar em uma cachoeira limpa, e um dia de chuva era para deitar no colo da minha avó e ouvir histórias. Desde cedo, me encantei lendo Clarice e suas impressões do banho de mar. Tão menina, tão desnecessária de outras riquezas. 

Vou passear com os três depois de colocar o ponto final nesse texto. E vou observar, com ainda mais cuidado, a vida que vejo e que passa por mim, e em mim, todos os preciosos dias. Agradeço aos que me ensinaram a romper os desertos e a frieza e a encontrar beleza em cada respiração desse planeta tão lindo que ganhei de presente ao nascer. 

A dor dos animais dói, também, em mim!

Leave a comment