O tempo aliado ou o tempo devorador?

07.11.2021

Gabriel Chalita

O relógio explica que é preciso deixar os receios e voltar a viver.

É manhã de um dia que se seguiu a tantos outros e que traz a obrigação do reinício.
Sou professor. E professor alfabetizador. Na minha leve opinião, a alfabetização é uma das maiores aventuras humanas. A alfabetização me leva à leitura, do mundo e das pessoas. Do texto. Ler é percorrer outros imaginários. Ler é um entranhamento fascinante de histórias nascidas de mentes generosamente leais à literatura. Alfabetizo para tirar portas incômodas do cenário vivo e mutante do que se deve ler.

Sou um ser em construção e as experiências narradas por tantos outros me servem de cimento firme na formação da minha linguagem, do meu caráter. Uma obra nascida de um escritor, de uma escritora, provoca conexões entre as tantas regiões que habitam o humano. O imaginário do pensamento e da emoção. A ampliação dos repertórios que ampliam as vidas em novas possibilidades. A leitura oferece inteligência, criatividade, empatia, compaixão.

Lembro-me  de uma professora da universidade que, vez ou outra, fechava os olhos quando reverenciava uma personagem nascida de um autor. Autorizava ela as emoções reais depois dos embates ficcionais no pensamento. Dialogavam, assim, razão e coração.  Contava que, na Grécia Antiga, havia avisos nos portais que davam acesso às bibliotecas, com a advertência de que estavam prestes a adentrar um local de cura da alma.

Minha alma está em êxtase. Palavra que gosto muito e que me significa um êxodo, também. A alegria que me preenche faz com que eu saia de mim mesmo em direção ao outro. E, por isso, sou professor. E, por isso, professo a crença na bondade, na beleza e na justiça. Sou semeador de tempos novos. E, se encontro terrenos resistentes, resisto a desistir. E prossigo alimentando minha esperança de atitude.

O relógio explica que é preciso prosseguir pensando, enquanto caminho para a escola que fica perto de onde moro. Na escola, o relógio será novamente visto por crianças que deixaram os tempos das pausas. Nos sons da memória que ressoam em mim, vem a imagem de uma professora Helena que, nas infâncias da minha vida, entrou na sala de aula e confessou sua consciência de saber o seu lugar no mundo: “Finalmente as férias terminaram”. Em mim, ecoou como “Eu amo vocês” ou “Não há nada de mais significativo na minha vida do que estar aqui, com vocês, exercendo o meu ofício de ensinar”. 

Desta vez, as pausas não foram de um ou alguns meses. Não foram férias. Foram períodos de medo, de incertezas, de reinvenções, de convivências complexas em lares que deveriam oferecer amor. E,  agora, estamos voltando.  Há receios em mim. O que fazer com os tempos desperdiçados? Foram tempos desperdiçados ou tempos vividos?  Não gosto de brigar com o tempo, até porque sei que, se me entregar à insistência, sairei derrotado. 

Prefiro ter o tempo como um aliado, não como um devorador. O tempo me alivia dores, me faz compreender amores, me ensina a resistir e até me oferece, no rosto, algumas rugas e, na alma, muitas cicatrizes. 

Vou entrar na sala de aula sem a ânsia de atropelar o aconchego. Sei que o que tenho de fazer, por primeiro, é oferecer presença, é relembrar afetos, é celebrar o encontro.
Se me dessem a oportunidade de mudar de profissão, sorriria agradecendo e, agradecendo, diria que o que experimento vai além dos entraves que me perturbam.

Perturbado fico, quando não posso ensinar, quando desisto de aprender. Isso, não. Já expliquei ao tempo que quero prosseguir semeando. Que quando chegar a hora de experimentar o mistério, quero ainda sentar um pouquinho e ler algum bilhete deixado por um aluno me dizendo da felicidade de viver. Um bilhete, há tempos, descansado em alguns dos tantos livros que enfeitam a minha alma ao lado da cama em que descanso a vida. 
 

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