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A idade do amar

11.07.2021

Gabriel Chalita

Ela mora em frente à minha casa. Falamos pouco. É Darcy o seu nome. O meu, também.
Não faz muito tempo, a surpreendi com um daqueles cigarros que se faz com as mãos. 
Ela, na janela. Eu, também.

Ao longe, observei o desleixo com a vida. O vestido com algum remendo. O lenço por sobre os cabelos mal colocado. A tristeza do mundo inteiro morando em um olhar.

Viúvo, também sou. Minha Adélia se foi dessa doença terrível que silenciou a humanidade. Ainda sofro a ausência do cheiro que me perfumava de alegria. Era descrente Adélia de que o vírus roubaria vidas. Era crente na fala errática dos que brincaram com a vida dos outros. Cuidou pouco de si mesma e se foi, tristemente, sem despedidas. Dizia ela que Deus ajeitaria para que nada de mal acontecesse, e eu dizia que Deus nos deu a inteligência para não cobrarmos Dele o que nós mesmos podemos fazer.

Minha Adélia levou um pedaço de mim. Éramos diferentes até nas escolhas políticas, éramos um na cumplicidade humana de amar sem exigências.  Quando doente ela ficou, preferi que fosse comigo. Desacreditei da vida, quando a vi sem vida. Choro ainda a não conversa, a não presença, o não abraço em anos de noite esquentando a mesma cama de amor. 

Darcy tem a beleza escondida nos seus mistérios. Conheci o Armando, seu marido. Homem de sussurros. Vi nada dos seus dizeres nem dos seus carinhos com a mulher. O cumprimento era com o olhar e, vez ou outra, um aceno discreto.

Fui ao enterro do falecido. E desacreditei de alguma dor maior em sua mulher. Parecia satisfeita com o desfecho. Quem sabe o que vive junto um casal? 

Darcy tem uma filha que mora fora. E que estudou com a minha filha que, também, não mora por aqui. Vive ela só. Eu, também.
Ainda tenho a idade do amar. Darcy mora no número 57. E eu no 66. A soma dá 12. Cismei que significa alguma coisa. 

Não poucas noites, acordei surpreendido com um sonho bom em que fazíamos juntos o cigarro de palha e que, depois, sorríamos como um convite. Na primeira noite, pedi desculpas para Adélia. Sei lá se os mortos entram nos sonhos da gente. Fazia uma semana que ela havia me deixado. Achei que, pelo menos, deveria esperar 12 dias para sonhar com outra mulher.

Se me perguntarem se tem Darcy atrativos que despertem uma paixão, respondo nada. Não sou das externalidades. Cultivo o que mora dentro. E, no silêncio de Darcy, há algo que barulha os meus sentimentos.

O dia em que ela estava com uma garrafa térmica de café servindo a si mesma em uma pequena xícara, fiquei observando a fumaça subindo livremente. O silêncio daquele ritual foi quebrado por um carro de som oferecendo pamonhas. 
Acenei para o vendedor e comprei duas.
Pedi que atravessasse a rua e entregasse uma a ela.  Ela pegou e negou qualquer sorriso. Não comeu na minha frente. Prosseguiu no café e no olhar misterioso. 

Há uma figueira esguia que sombreia minha janela e tenho a impressão de que é para os seus galhos que olha Darcy. Ou então, disfarça ela, de mim, os seus sentimentos.
Percebo que as plantas da entrada de sua casa estão mal cuidadas. Há algumas samambaias que, se podadas, ganhariam mais beleza. Gosto de como elas caem, despreocupadas, pintando de verde as paredes.

Sou bom no cuidar. Pensei em oferecer o que sei, mas voltei a ser o adolescente medroso de antes de Adélia aparecer e nada disse. Pensei em escrever a Darcy, explicando que, talvez, estejam Armando e Adélia conversando por lá. Achei desnecessário.  Estou esperando uma ocasião para atravessar a rua e entrar em seu silêncio. Quem sabe ela tenha uma tosse e eu corra, rapidamente, com um pote de mel?! Ou, então, eu corrija alguma goteira que, em dia de chuva mais forte, perturbe o seu teto?

Nossas idades pouco importam. Importam as carícias que temos condensadas em compartimentos possíveis de serem abertos. Sonho com um caminhar de mãos dadas até a praça que fica na rua de cima.
Sonho em desajeitar os passos para confundir os paralelepípedos que sustentam paradas as nossas vidas.

Gosto  do movimento, do sorvete e do beijo de amor. Dizia Adélia que era eu um romântico das antigas.  Dirá alguma coisa Darcy? Sei que tenho me aprumado melhor. Que voltei a comprar camisas novas e que me barbeio com finalidades maliciosas.  Quero encostar no rosto de Darcy a pureza de um amor na melhor idade.

E quem disse que não há beleza no entardecer?

E quem disse que os sorrisos, nos inícios, não podem ser para dentro?

Frio no jardim

04.07.2021

Gabriel Chalita

De onde estou, vejo o frio e vejo o silêncio.
O cansaço me tira outra visão. E o conforto de pouco me mexer me desmobiliza de ir em busca de aquecimentos.

O jardim aquietado pouco perfuma. As rosas, antes tão luminosas, se perdem na timidez dos desânimos. As árvores, podadas pelos enganos, já não se comunicam como antes.  É inverno no tempo e na alma dos irmãos meus.

Há pássaros que trazem esperanças, mas são logo espantados por gritos histéricos de vermes rastejantes. Quem deu a eles tamanho? Quem a coragem ofereceu para rasgarem os disfarces e as almas de tantos irmãos meus? São preconceitos que voltaram a ocupar o jardim. São pragas que disseminam desamor. São cadafalsos de tempos que anunciavam vir tão mais felizes.

Onde estávamos, ontem, que não limpamos antes? E por que foi que nos desmobilizamos?

Vejo o sol ao longe, mas minhas mãos desabituaram de pegar o seu brilho. Envelheci antes, certamente. Descri da chegada de algum calor. Fico aguardando que cantem por mim, enquanto vivo a mudez. Lembro de tantos que já se foram e que rasgaram as mãos, limpando a vida do que a vida ameaçava. Eram fortes pela ausência de descanso. Eram valentes pela causa que anunciavam. E a sonoridade das notas de suas vidas aqueciam todo o jardim.

De onde estou, pouca disposição tenho para me preocupar com as sementes. Erro meu. Engordo de distrações os dias que deveriam entregar, às minhas mãos, água, pá e vontade. Fecho os olhos e olho dentro de mim, procurando o que perdi. Grito para dentro, exigindo alguma reação.

Teria dado eu poder demais ao medo? Teria me convencido de que um lavrador sozinho não muda a terra? E quem disse que sozinho estaria, se me levantasse rumo à coragem? É isso que grito, de mim para mim, para que alguma lucidez espante o desânimo que me mantém vendo apenas frio.

O frio no jardim mata os desagasalhados e nada faço para agasalhar. O frio no jardim faz marchar os que pisoteiam a verdade. O frio no jardim estende os mastros da injustiça como bandeiras de um povo incauto e inculto.

Busco, nas gavetas em mim, as argamassas de tempos novos, de primaveras do conhecimento, de encontro das diferenças fazendo canção. É de cultura que falo. De cultuar e cultivar a terra, o jardim, a alma dos irmãos meus. Mesmo dos que desalmados ficaram pelo engano dos dias.

Os gritos confundem, as ameaças atormentam, e o silêncio protege os vermes que vão crescendo de tamanho e de coragem. Sei que é  inverno, mas isso nunca foi desculpa para acomodar a estação.

Ao longe, o barulho de um trem, como nos tempos em que eu saía e visitava um museu cheio das coragens dos meus antepassados. 
Estariam eles sentados na vida, enquanto vidas partem prematuramente?

Volto ao meu interior para me aquecer e ouço um pássaro que persiste cantando, mesmo em meio ao gritos dos vermes. Agora, outro pássaro. E mais um. E, então, eu me alimento dos necessários incômodos que, com o frio, haviam partido. Mais um pássaro resolve correr o risco do congelamento e canta. Canta ele, cantam eles, uma canção que me comove, que me move.

Amanhã, espero escrever de um outro lugar. Não do que vejo acomodado, mas do que desacomoda os tempos para deixar o jardim ser jardim.

Frio no jardim

04.07.2021

Gabriel Chalita

De onde estou, vejo o frio e vejo o silêncio.
O cansaço me tira outra visão. E o conforto de pouco me mexer me desmobiliza de ir em busca de aquecimentos.

O jardim aquietado pouco perfuma. As rosas, antes tão luminosas, se perdem na timidez dos desânimos. As árvores, podadas pelos enganos, já não se comunicam como antes.  É inverno no tempo e na alma dos irmãos meus.

Há pássaros que trazem esperanças, mas são logo espantados por gritos histéricos de vermes rastejantes. Quem deu a eles tamanho? Quem a coragem ofereceu para rasgarem os disfarces e as almas de tantos irmãos meus? São preconceitos que voltaram a ocupar o jardim. São pragas que disseminam desamor. São cadafalsos de tempos que anunciavam vir tão mais felizes.

Onde estávamos, ontem, que não limpamos antes? E por que foi que nos desmobilizamos?

Vejo o sol ao longe, mas minhas mãos desabituaram de pegar o seu brilho. Envelheci antes, certamente. Descri da chegada de algum calor. Fico aguardando que cantem por mim, enquanto vivo a mudez. Lembro de tantos que já se foram e que rasgaram as mãos, limpando a vida do que a vida ameaçava. Eram fortes pela ausência de descanso. Eram valentes pela causa que anunciavam. E a sonoridade das notas de suas vidas aqueciam todo o jardim.

De onde estou, pouca disposição tenho para me preocupar com as sementes. Erro meu. Engordo de distrações os dias que deveriam entregar, às minhas mãos, água, pá e vontade. Fecho os olhos e olho dentro de mim, procurando o que perdi. Grito para dentro, exigindo alguma reação.

Teria dado eu poder demais ao medo? Teria me convencido de que um lavrador sozinho não muda a terra? E quem disse que sozinho estaria, se me levantasse rumo à coragem? É isso que grito, de mim para mim, para que alguma lucidez espante o desânimo que me mantém vendo apenas frio.

O frio no jardim mata os desagasalhados e nada faço para agasalhar. O frio no jardim faz marchar os que pisoteiam a verdade. O frio no jardim estende os mastros da injustiça como bandeiras de um povo incauto e inculto.

Busco, nas gavetas em mim, as argamassas de tempos novos, de primaveras do conhecimento, de encontro das diferenças fazendo canção. É de cultura que falo. De cultuar e cultivar a terra, o jardim, a alma dos irmãos meus. Mesmo dos que desalmados ficaram pelo engano dos dias.

Os gritos confundem, as ameaças atormentam, e o silêncio protege os vermes que vão crescendo de tamanho e de coragem. Sei que é  inverno, mas isso nunca foi desculpa para acomodar a estação.

Ao longe, o barulho de um trem, como nos tempos em que eu saía e visitava um museu cheio das coragens dos meus antepassados. 
Estariam eles sentados na vida, enquanto vidas partem prematuramente?

Volto ao meu interior para me aquecer e ouço um pássaro que persiste cantando, mesmo em meio ao gritos dos vermes. Agora, outro pássaro. E mais um. E, então, eu me alimento dos necessários incômodos que, com o frio, haviam partido. Mais um pássaro resolve correr o risco do congelamento e canta. Canta ele, cantam eles, uma canção que me comove, que me move.

Amanhã, espero escrever de um outro lugar. Não do que vejo acomodado, mas do que desacomoda os tempos para deixar o jardim ser jardim.

O acumulador de bondades

30.05.2021

Por Gabriel Chalita

As máscaras foram deixadas de lado no domingo de ventos e de sol. Pela janela, um som bonito de felicidade. Éramos poucos, como convém nesses tempos de pausa. George sorri com os olhos e fala, sem pausas, a alegria de viver. Gosta dos aniversários. Eu gosto, também. 

O sol forte ilumina a minha alma. Pela janela, olho a vida.Vem um pensamento de outros tempos. Morava eu nos fundos de uma casa, não muito longe de onde estou. Era jovem e era feliz.  Ronaldo era o dono da parte da casa que me cabia, era a ele que pagava, regularmente, o aluguel. Sei pouco de sua vida. Sei que ele era um acumulador.  Os móveis brigavam por espaço. As caixas, de onde vinham os móveis, também. As louças, que eu avistava pela janela, por entre os tantos guardados que quase impediam a visão,  misturavam-se a espaço nenhum. 

Na entrada, havia muitos vasos e poucas flores. Tentei falar de algum plantio. A escuridão da ignorância, entretanto, preenchia os pensamentos sisudos de Ronaldo. Ele andava carregando o peso do mundo. E sofria de  um esquecimento da condição natural de felicidade.  As roupas guardadas eram tantas, e as que usava, as mesmas. 

Não sou dono das decisões de ninguém, apenas observo e absorvo o que me inspira e o que me afasta. Decidi deixar o meu canto minimalista, enfeitado de passarinhos que me acordavam, brincando com as flores boas que eu cultivava. Lembro-me do dia em que escolhi e do dia em que parti. Da conversa com Ronaldo. Das frases soltas que jogamos. Família, ele não tinha. Nem disposição para o calor. Na ausência das relações, preenchia ele, de coisas, a vida.

O barulho de George me acorda do passado. Conta ele de uma amiga entristecida com a partida de um amor. E de seu amparo. “Sou dos que param o dia para ajudar algum amigo”, disse George. Eu concordei. Multiplicou ele as forças para, de mim, cuidar, quando me acidentei. Dias difíceis.

Era um dia assim, cheio de verão, e um caminhão acumulado de descuido me jogou fora da estrada. Desacordado, acordei sendo cuidado. Não tenho a ingenuidade de imaginar bondades nas pessoas. Sei que é mais fácil causar dor no outro do que sentir dor. Sei que há uma orla de insensatos que agride a vida destruindo sentimentos. Vejo isso nas ruas, vejo isso nas redes. Desperdiçam o prazer de falar com as pessoas para falar das pessoas.
George não é assim. Diferentemente de Ronaldo, George é um acumulador de bondades. 

No meu pé direito,  a cicatriz do acidente. No meu lado esquerdo,  a metáfora da gratidão por encontrar amigos na travessia que me compete no misterioso tempo da existência.

O bolo é de morangos. Sophia abana os rabos e brinca de latir. O vento mais atrevido atrapalha o cabelo de Maísa, que está comigo. Digo que vou embora, ele insiste para um pouco mais de permanência. Esclareço que permaneceremos sempre, que a amizade é um sopro divino que nos relembra a essência de cuidadores. Nascemos para cuidar. Nascemos para sermos cuidados.
Ele agradece contando uma das tantas histórias engraçadas que homenageiam a leveza do bom humor.

Andando de volta para casa, respiro o dia que se despede, agradecendo. 

O perfume de Rosa

23.05.2021

Gabriel Chalita

Faz tanto tempo e o perfume, ainda, preenche. Os azulejos da cozinha são os mesmos. Envelhecidos pelo ar da idade. O azul se acalmou. As minhas inquietudes, também.

Era Rosa o nome da minha avó. Rosa é mais do que um nome, é uma vocação.

Meu avô, eu conheci pequeno e, pequeno, dele me despedi. Ouvi, desde sempre, o som de uma tosse perturbadora e o som de um amor cuidador. Rosa cozia a vida para iluminar aquele quarto onde foram tão felizes.

Eu gostava de ficar imaginando o que conversavam quando tinham um futuro. Ela era mais alta do que ele. Mais decidida, decidi eu que pouco conheci seus tempos de independência.

Quando minha mãe morreu, foi com ela que escrevi os dias. Sobre lembranças, posso escrever um tratado. Da minha volta da escola. Do sono com ela, depois do almoço. Seus dedos brincando de desarrumar os meus cabelos e de cantar canções de calmaria. 

De quando quebrei o braço. Mal sabia ela que era um desejo que eu, secretamente, alimentava. De ter gesso. Das pessoas escreverem dizeres. De quando chorei por ter sido reprovado no coral da escola. A gente afina e desafina, é assim a vida. E eu enxugava o resmungo e ia viver.  

Meu avô ouvia do quarto a conversa e gritava uns sons querendo entender. 

Ela socorria os dois. E também minha tia, a mulher mais namoradeira que já conheci. Pelo menos nas falas. Todo homem tinha propensão a querer viver uma história com ela. Mas era ela muito inteligente e eles se afastavam, era o que ela explicava. “Alessandro”, vou te ensinar a vida, dizia minha tia, que pouca vida teve antes de partir. 

Minha avó enterrou as duas filhas. E enterrou a tristeza, depois de um tempo. E encerrou as incompreensões de um fardo tão carregado. E viveu os dias sem reclamos. Seu semblante me inspirava. Os seus movimentos, eu imitava brincando.

Havia um roseiral no quintal. E eu gostava de ver as podas, os cuidados, as conversas. Uma Rosa dizendo às outras rosas os seus sentimentos. 

Digo isso, hoje, porque acordei com o cheiro da torta  de maçã  que ela fazia. 

Nunca soube que as memórias cheiravam. Cheiram. Cheiram saudade. Cheiram um tempo. O tempo doce das rosas. O prazer que minha avó tinha de cortar as maçãs, de preparar a calda, de enfeitar cada instante do seu dia para alimentar a vida.

No sepultamento do meu avô, lá estava ela. Altiva. Digna. Sabedora de ter feito o necessário. Chorou a despedida e, de mãos dadas, fomos para casa. Por algum tempo, ficou sozinha no Roseiral. Eu vi da janela. Eu fotografei na minha alma. 

No dia seguinte, arrumou o quarto. Separou o que o agasalhava e agasalhou outras pessoas.

Invariavelmente, ela levava tortas de maçãs para um asilo que ficava no quarteirão onde morávamos. Eu ia junto. Cresci indo junto com ela viver a generosidade. Sei que sofrimento não é escolha, escolha é o que fazemos com o sofrimento. Aturdido por barulhos insanos, é comum gritarmos a dor. Rosa gritava a coragem ou silenciava até encontrar forças. 

Na sala em que ela guardava boa parte dos seus livros, havia um sofá confortável onde eu me deitava no seu colo e pedia conselhos. Mesmo depois de crescido. Mesmo depois de liderar centenas de funcionários em uma empresa. Tirava o paletó, os sapatos e me deitava em Rosa e me perfumava de um amor inesquecível. Ela ora apenas ouvia, ora dizia. 

Ela morreu no despedir de um dia comum.

Já não morávamos juntos. Fiz de tudo para ela ir comigo. Agradecia sempre e sempre me explicava que gostava das recordações de onde vivia. Era um dia comum, como disse. Passei cedo na sua casa,  e ela estava na cozinha fazendo a tal torta. Falamos da morte, porque uma atriz amada havia morrido. “Que privilégio morrer trabalhando”, disse Rosa. E disse mais,  que a morte era apenas uma luz que mudava de lado, um caminhante que atravessava a margem de um rio, uma primavera que devolvia perfume às flores que o inverno levava. Gostava Rosa dos livros. Gostava de ler ou contar histórias para mim. Eu disse que passaria no fim do dia. E passei.

Na poltrona, Rosa estava, confortavelmente, sentada com um livro nas mãos. Os olhos cerrados indicavam a partida. As rosas no vaso antigo enfeitavam. E a música ainda prosseguia explicando o amor. Sem dores ela se foi, aos 93 anos. O cabelo impecavelmente arrumado. A leve maquiagem. O colar de pérolas que eu dei. E o cheiro da torta de maçã sobre a mesa, preparada para comermos juntos.

Faz tanto tempo e tudo é tão ontem dentro de mim.

Entre o doce de goiaba e a banana desidratada

16.05.2021

Gabriel Chalita

Mandar no que eu como? Não. Nem os meus filhos mandam. Tenho o corpo que quero ter na idade que tenho. E isso é problema que não compete a uma agregada. Quando tiver tempo, procuro melhor o significado desta palavra: agregada.

Meu filho do meio é meio lento para a compreensão de quem presta e de quem não presta, quando se trata de paixão. 

Valéria não é grande coisa. E não me venham com o apetite de dizer que tenho ciúme do meu filho.

A Janaína, que é a mais velha, se casou com um homem que poderia ter nascido de mim, de tão parecido comigo que é. Meu genro nunca deu palpite no que eu como, pelo contrário, faz questão de me alimentar com guloseimas e com carinho.  Já disse que quero um neto igual a ele. Janaína ri desconcertada. Mas gosta dos delírios da mãe faladeira. 

O Júnior, o caçula, ainda não escolheu. Tem tempo. Espero que não siga a sina da ausência de pensamento do irmão.

Otávio pensa nada. É guiado pela veterinária. Valéria é veterinária, não sei se já disse. Diz ela que gosta de bicho, o que já ganharia de mim alguma aprovação. Bicho, ela não tem. Com a Pipoca, cachorra de casa, ela só brinca quando eu estou vendo. Pensa que eu sou cega. Me faço, às vezes.

A Tereza, que trabalha em casa, concorda comigo. Valéria tem o porte de não se importar com ninguém, além dela mesma. 

Foi, então, que eu me ressenti com o seu comentário sem pertinência. “Dona Dulce, a senhora não deveria comer tanto doce. Se quiser, eu trago um banana desidratada que faz o mesmo efeito”.

“Não quero”, pensei comigo. Não quero de jeito nenhum. Banana desidratada. Ela pode ser magra, mas beleza só o sonso do Otávio para enxergar. Sabe o que me incomoda mais, é que, toda vez que ele fala, ela interrompe. Ela sempre sabe mais do que ele. Ela sempre tem um exagero a mais do que os exageros que os outros contam.

Minha avó dizia que tem gente que sabe, tem gente que não sabe e tem gente que pensa que sabe. Esses são os piores. Essa é Valéria. Não há assunto que ela não pense que saiba. E o indefeso do Otávio diminui a voz para o nosso desprazer de ouvir a voz da Valéria.

Todo o apetite que tenho para o doce de goiaba, que não é desidratada, eu não tenho para a conversa da fulana. Já expliquei para o Otávio o que eu penso. E disse devagar para ele compreender. Ela é nervosa demais. É mandona. Dá broncas nele e isso antes do casamento.

Ele, que não é dado a discordâncias, apenas sorri para mim e diz que me ama. 

E, então, eu deixo as rasuras de lado e me apego ao principal. Um texto que nasceu de mim e que só diz bondades. Ele se forma médico o ano que vem. Trabalha com tanto afinco. Vai ser oncologista. Pesquisa o que pode para diminuir a dor do mundo. Fala sem arroubos, ouve com generosidade e une as mãos ao coração para em ninguém tocar sem deixar um tanto de amor. Um homem desses não poderia encontrar alguém que falasse menos? 

Pipoca não gosta de Valéria. O que, para mim, é uma confirmação das minhas suspeitas. Pipoca é uma cachorra sensitiva. Se ela desconfia, eu desconfio. 

Tereza disse que ouviu um barulho de Valéria reclamando de mim para o Otávio. Que faz de tudo para me agradar, mas que eu dou de ombros para os seus afagos.

Quero afago nenhum dela. Quero verdade. 

E a verdade é que eu crio os meus filhos para a felicidade.

O Otávio é muito diferente quando está sem ela. É mais leve. É despreocupado com as brincadeiras. É inteiro. A Janaína, a minha filha mais velha, que é psicóloga, diz que ou você é você em uma história ou é preciso que a razão explique para o desejo que não vale a pena prosseguir.

Eu concordo.

Perdi cedo meu marido. O câncer o levou sem compreender o vazio sem ele. Abracei meus três filhos. Chorei o que tive de vontade. E decidi viver espantando qualquer desistência. Otávio não diz, mas sei que querer prolongar a vida dos doentes é um aprendizado nascido da dor da partida do pai. 

Éramos os quatro. Meus três filhos e eu brincando de acordar os dias e enfrentar os tempos ruins. Eu levantava batendo panela no quarto deles e cantando alguma canção engraçada. E exigindo alegria. Aprendi com as minhas cicatrizes que alegria é hábito. E ensinei isso a eles. Então, por favor, vou comer o doce de goiaba que eu quiser. E, discretamente, vou rezar para que o meu menino acorde da teimosia de achar que, aos poucos, a Valéria se apruma. 

E olha que eu até acredito em milagres!

Carta para a mãe de Paulo Gustavo

09.05.2021

Gabriel Chalita

Dona Deia, hoje é dia das mães. E sei que seu coração dói. Enterrar um filho é desdizer o cordão umbilical, é inverter as lógicas, é desapropriar o direito de lamber a cria com a alma, de impedir a visão encantada de ver o fruto crescendo. 

O fruto, Paulo Gustavo, cresceu. Se fez um homem capaz de emocionar um país inteiro. O fruto abraçou a autenticidade como princípio de vida. 

Foi assim que ele fez com que pudéssemos conhecer a mãe, nas suas peculiaridades, no seu humor, no seu inegociável exercício de amar. Ele fez humor com respeito. Ele fez humor com inteligência. Ele fez humor com a pedagogia própria dos que perfumam o mundo com a sua existência. Nos perfumamos de Paulo Gustavo. No teatro, no cinema, na televisão, nas novas mídias, nas matérias que iam desvelando um pouco a sua vida.

Seu filho amou sem receios. E, sem receios,  foi se apresentando como um colecionador de verdades. Nada de máscaras. Nada de sombras. Foi a luz da sua vida que clareou tantos preconceitos. Que aliviou tantas inseguranças. 

Amou um homem, Thales, e por ele foi amado. E por ele é amado. A fotografia da história dos dois inspirou outros a não temerem as singularidades, princípio tão bonito do existir humano. Cada um é único e cada um tem o direito de ser feliz do seu jeito. De construir a sua trajetória ao lado de quem faz a travessia ser mais aconchegante. Thales também chora, hoje, a ausência do seu amor. Embora dentro dele, o amor permaneça. 

A paternidade trouxe ao seu filho novas perspectivas. Ele não estará acompanhando o crescimento do Gael e do Romeu. Mas o Gael e o Romeu crescerão sabendo do pai que distribuiu sorrisos e plantou alegrias, do pai que rompeu barreiras e que fincou a bandeira da verdade onde pôde, do pai que fez do tempo e do espaço uma eternidade de sonhos e de realizações.

Eles vão rever, muitas vezes, ao seu lado, as imagens que ficaram do Paulo Gustavo e vão aplaudir, com a vida, a vida que decidiu dar vida a eles. 

Hoje é dia das mães, Dona Deia. A senhora tem uma outra filha para beijar. A senhora tem uma história para agradecer. A senhora tem uma dor para conviver. Mas a dona Hermínia é forte. É ousada. E fez um contrato com a vida. Nada de desistências. Seu filho, que fez de tudo pela senhora, envia sinais de ternura pelas imagens e pelas frases que, miraculosamente, permanecem dentro da gente. E ele te diz: Feliz dia das mães. E ele sorri brincando de ser filho em outra estação. Uma que desconhecemos, mas que existe.

O vulcão de amor que é seu filho não acabou. Permanece onde não sabemos, apenas sentimos. Porque os sentimentos, talvez, sejam mais nobres que os pensamentos. Há muitas mães, como a senhora, que hoje gostariam de ter, no colo do cuidado, os seus filhos. E há muitos filhos que, também, se ressentem do vazio das mães que vivem na eternidade e nas memórias. 

Eu sinto muita falta da minha mãe. E, então, te abraço na alma, comungando da falta que sei que seu filho faz. O seu filho virou um pouco irmão nosso. Rezamos por ele, torcemos por ele, choramos por ele. No plano humano, lamentamos a partida. No plano da fé, simplesmente agradecemos.

No curto espaço do seu existir, Paulo Gustavo eternizou os sentimentos mais lindos que elevam a humanidade ao lugar onde ela se reconhece humana. É humano o direito de sofrer e é, também humano, o direito de agradecer vidas curtas que alongam os sentimentos do mundo.

Querida Dona Deia, um ser de luz só nasce de um ventre de luz.  Feliz, apesar da dor, dias das mães.

Folhas de abril

02.05.2021

Gabriel Chalita

As folhas de abril já se foram. Inclusive, algumas da árvore que vejo enquanto escrevo.  Caem uma a uma. As folhas do calendário, inventado por mente humana, também.

Abril não esperou mais do que o esperado. E se foi. Encerrei abril, fazendo aniversário. Acordei, antes do dia, e cambaleei tateando lembranças. 

É de minha mãe que mais sinto falta. No abril passado, ela era presente. Dei, em pedaços, um bolo grande que ganhei. De uma cama de hospital, ela sorriu inteira. E contou, com a voz já ensaiando despedidas, os lindos abris que vivemos juntos.

Juntos lembramos de meu pai que, há muito, já não nos abraçava nos nossos aniversários, a não ser dentro de nós, nos aconchegos da lembrança. Enfermeiras ouviam em atenção. Um filho alimentando sua mãe que o alimentou sem pausas, em todo o seu existir. 

E se foi abril. E permaneceu a consciência de que, em nenhum outro abril, eu teria a minha mãe como tive antes.

As folhas caem e forram os chãos da memória. O vento leva para longe quem amamos. As raízes permanecem. O cordão umbilical que une terra e firmeza não se desfaz. A seiva de amor percorre as veias dos sentimentos e prossegue nutrindo de vida a vida que ainda há. 

Sou um com minha mãe onde quer que ela esteja. Sou um com as folhas que já estiveram em mim e que foram partindo, uma a uma.  Sou um com os dias de ontem que ergueram o hoje que prosseguirá erguendo, enquanto houver um amanhã. Sou um com os olhos que me permitem ver a árvore que vejo, enquanto escrevo, e sou um com os mistérios que só vejo com o espírito aberto ao não tentar compreender. 

Sou razão, gosto dos argumentos e das peneiras que me emprestam discernimento para elaborar antes de concluir. Sou silêncio, crente de que, além da razão, moram mundos inteiros que desconheço, que sequer posso ver, porque há entre nós uma cortina costurada na imensidão que se chama mistério. 

Onde moram, hoje, minha mãe e meu pai? 

Onde moram os meus irmão que, prematuramente, se foram? Onde moram as folhas que me enfeitaram por tempos e que os ventos decidiram levar? Como saber? Se a razão tentar racionalizar,  despedaça-se em pedaços caídos da árvore que não vejo. Só sei que os sinto em mim. E, se os sinto, é porque eles cabem em mim. Cabem na parte inteira de mim que não conheço. 

Estão vivos, eu sei! Como sei? Não sei. Só sei que sei. E que sei, porque há uma seiva que transcende o que há em mim e que, ao mesmo tempo, há em mim, e que ao não me explicar me explica que é lindo, mesmo sem saber, acreditar.

As folhas que voam das árvores de abril e dos outros meses não se perdem, não deixam de existir. Voam os voos elevados dos que rompem invernos e acedem primaveras em tempos e espaços encantados. 

As religiões trazem lâmpadas para que possamos enxergar com a alma. A minha foi enroscada no bocal da fé, desde os tempos em que eu corria despreocupado ao redor da árvore e arriscava apanhar algum fruto para alimentar de alegria a vida. Os pensamentos eram puros como quem de nada desconfia, porque ainda só conhecia a cicatrização dos joelhos e das mãos raladas em terra por algum descuido infantil.

Hoje é minha alma que dói. E alma dói? Dói. Dói da tristeza das ausências. Dói das decepções dos ausentes de sentimentos. Dói do tempo fugidio incapaz de permanecer. Dor de alma também tem seiva alimentadora, fortalecedora.

Um aniversário é um ritual de agradecimento. A vida prossegue vencendo. Vagarosa e plena. Ou apressada e também plena.  Plena como a árvore que recebe chuva e calmaria, silêncio e barulho de revoadas. Plena como cada dia do calendário tem que ser. 

O abril que se foi , não se foi. Vive em mim.

Agora, é maio. Daqui a pouco, vou chorar o dia das mães sem mãe. Eu tenho mãe. Preciso me lembrar disso. No mistério que mora fora e dentro de mim, eu tenho mãe. O colo não tenho, é fato. 

Colo, então, nessa imagem, de um dia nem frio nem quente, de um dia em que o vento perturba pouco a árvore, em que passarinhos, que não pensam o que eu penso, cantam para cumprir o seu estar no mundo.

As flores, também, se abrem sem pensar. 

Quisera eu apenas cantar ou me abrir para enfeitar de generosidade o mundo… 

As folhas de abril já se foram, os meus pensamentos permanecem.

Um gato acariciando a janela

25.04.2021

Gabriel Chalita

Joaquim é o nome que dei a um gato que veio da rua e foi ficando.

Joaquim é o primeiro nome de Machado de Assis, o escritor que acariciou a alma da humanidade com os seus textos e os seus subtextos, com seus ditos e os seus mistérios. 

Joaquim, o gato, acaricia a janela, enquanto separo umas roupas para o bazar. O frio se aproxima, e eu fico incomodado cada vez que penso nos excessos e nas faltas. Tenho tanto e tanta gente tem nada.

Enquanto recolho, ouço música vinda de algum lugar. Deve ser da casa da Irene, contígua à minha. Ela gosta de revezar ópera com silêncio. Não me incomodo.

Na semana passada, fui encerrar o dia tomando chá em sua elegante mesa. Em silêncio, a música nos penetrava. De tempos em tempos, Irene explicava a canção. Havia algo de arrebatador em seus textos. Era sublime ouvir a sua voz entre vozes que preenchiam o mundo com a música. “Callas canta a dor como ninguém”, explica ela. Callas canta Carmen em uma explosão de beleza. Irene faz um movimento de devoção. É como um ritual sagrado em que o êxtase disfarça o cotidiano. 

Três lugares estavam cuidadosamente arrumados. O dela, o meu e um terceiro que, aos poucos, fui sabendo que era destinado a todos os ausentes. Irene não gosta das falas diretas. Mostra pouco do que é. E eu gosto de imaginar os seus mistérios. As luzes da casa são indiretas. Os abajures é que nos iluminam, na temperatura certa. Em cada canto, uma história.

Volto para casa e vejo Joaquim. Apago as luzes de cima e ligo um abajur próximo a uma poltrona antiga, herança do meu avô. 

Joaquim se preocupa nada com a vida. Mia de preguiça e percebe os movimentos sem grandes sobressaltos. Lambe o pelo limpando o que o incomoda. Come o que decide do que sirvo a ele. Quando quer, deita nos meus pés e oferece um afago. Quando quer, vai aos vizinhos examinar a noite. Não proibo nada. Veio por escolha e é por escolha que permanece.  

Volto às roupas guardadas e ao necessário desapego. A música diminui de presença. E, então, ouço um intermitente som de torneira pingando. Vou ao único banheiro da casa e nada. A torneira da cozinha está fechada. É a torneira do quintal. Sento ao lado dela e fecho os olhos para diferenciar os sons que incomodam dos sons que arrebatam a alma. Penso em Callas e na história que ouvi de Irene. Queria eu ter tido o amor de Callas, queria eu ter medicado as suas feridas da alma. A água vai pingando, enquanto Joaquim vem deitar próximo a mim. 

A lua não autoriza a escuridão. E, então, eu vejo as árvores que rejeitam os muros descansando na noite. Penso nas minhas impermanências, quando contemplo a gigante figueira que me olha pequeno.

Fecho a torneira. Já poetizei demais os pingos d’agua. É melhor entrar.  Joaquim entra comigo. E se esfrega tentando espantar pensamentos que possam me entristecer. Explico a ele que a tristeza faz parte de mim. A infelicidade, não. A infelicidade vem de um espírito fechado. Vem de lamúrias, de reclamos diante da vida. Isso não. Gosto da vida e das suas estações.

Já não sou tão moço. Já sinto o tempo pesando em mim. Já doem em mim as ausências e as impossibilidades. Mas são dores boas. Não choro os que se foram sem antes agradecer por terem estado. E, se percebo que as roupas já não mais me servem, experimento outras ou até a nudez exata de quem precisa se enxergar como é. 

Tive diversos amores. Alternei sobressaltos e prazeres. Autorizei me rabiscarem de descuidos, era medo de solidão. E desvalorizei algumas poesias que me amanheciam, era imaturidade. 

Não. Já não tenho a idade das culpas. Passei o que passei e fiz as escolhas que fiz com o que sabia, até então. Hoje, prossigo sabendo nada. 

Gosto de olhar os mistérios do olhar de Joaquim e de ficar imaginando de onde vêm os gatos. Tem ele muitas vidas? E eu?

A minha janela é diferente de todas as janelas que há, porque ele a acaricia. Porque vejo todas as ruas do mundo, vendo ele. Quanta estupidez em quem desconfia dos gatos. Desconfio eu dos humanos. Principalmente dos que não gostam de música.

Agora ouço outra ópera, entrando pela minha janela. Não sei se é Callas, mas decido que é.  A voz combina com o gato que combina com a noite que combina com a minha alma. 

Amanhã, levo as roupas para doar e fico comigo mesmo e com o que ninguém nunca vai tirar de mim.

Minha amiga Juliana

18.04.2021

Gabriel Chalita

Meu marido diz que vivo sem ele, mas não vivo sem ela. Ela diz que chegou antes. E que deveria ele ser grato por ter ela incentivado o tempo do encontro e os tempos todos que vieram depois.

Eu digo nada. Tenho um marido que me sabe a alma e que perfuma os meus desejos com delicadezas. Nos dias frios, nos apertamos na cama aconchegante e, nos outros, não nos apartamos por sentir que o prazer vive em qualquer estação.

Juliana é falante. Oferece opiniões a rodos. Não há assunto que ela não se ponha a desenvolver. Sabe sobre emagrecimentos. Explica o que é potente para desfazer gorduras. Hélio, meu marido, ri das suas certezas, “Onde você fez faculdade de nutrição?”.

Juliana presta pouca atenção nas discordâncias. E prossegue receitando limões cortados em jejum, misturados com água morna e algumas gotas de um óleo milagroso que ela descobriu com uma comadre bastante sabida, segunda ela.Fato, Juliana pesa um pouco além do que gostaria e se justifica dizendo que tem problemas de circulação. 

Gosta de saber de enlaces amorosos. E é capaz de discorrer durante horas sobre o que dá certo e o que dá errado em uma relação. Se diz muito intuitiva. Basta uma mínima informação e ela decide a personalidade do novo pretendente de alguma amiga ansiosa. Decidiu ela permanecer sozinha, depois de algumas incursões em enlaces que juravam eternidade e se desfizeram em histórias mal contadas.

Semana passada, quis ela que Hélio espalhasse a dor de estômago misturando refrigerante, para limpar; com leite, para besuntar. Hélio se perdeu nos risos. Ela ficou ofendida, justificando que leu em diversas revistas científicas. E que, em um grupo qualificado de whatsApp, viu comentários de que os ciclistas de alto rendimento tomam coca cola antes das provas e que os nadadores se aquecem com leite. “Acho que leite de cabra, é fato”, disse ela.

Nos supermercados, Juliana, sempre bem arrumada, puxa conversa. Comenta sobre a escalada de preços e as frutas que caem melhor em cada ocasião. Fala de política, também. Omite opinões sem cerimônias.

É generosa, minha amiga. Se alguém morre, gasta os dias acalmando a ausência. Fez isso comigo, quando meu pai se foi. Hélio diz que ela deveria ter um programa de rádio chamado “Juliana responde”, porque não é possível alguém que não tenha cerimônia nenhuma em opinar sobre os mais diversos assuntos.

Ontem mesmo, no meio de uma conversa sobre finais de semana, disse ela que quem come uma maça por dia não terá problemas com cáries nos dentes. Que a maçã tem um ingrediente de limpeza mais potente do que um caro enxaguante bucal.

Vez em quando, jogamos baralho em casa. Ester joga conosco. Ester é amiga do silêncio e não se importa de ceder o tempo de fala à Juliana. Vez em quando, caminhamos e escolhemos uma padaria para espantar a fome. Sempre juntas.

Concebo a amizade como uma delicadeza do tempo para preencher de sagrado o espaço da existência. O tempo limpa o que deve ser limpo e deixa permanecer o que é forte.  O que sentimos uma pela outra é forte. 

Eu, também, tenho as minhas esquisitices. E ela não se importa. Finge que não repara. Hélio também sabe das minhas imperfeições e não as valoriza. 

Encontro pedaços de papel com escrituras poucas de um amor que faz questão de surpreender pedaços do meu dia. E rimos juntos, o que é prova de que a seriedade do amor não nos distrai do viver. Rimos, também, de Juliana e de suas certezas. E rimos com a Juliana da certeza de que o mundo se ajoelha diante de amores puros e agradece. 

Sei que há muitos barulhos por aí e que os sofrimentos estão descolorindo a vida. 

Mas me permitam, hoje, compartilhar um pedaço da vida que mora no pedaço do mundo em que resolvemos cultivar de amor.

De semente em semente, florestas são construídas. E isso não é opinião de Juliana. É a esperança que mora dentro de mim. Já pari filhos, já os permiti viverem.

Quisera eu parir felicidades, parir bondades, parir mundos em que o amor e a amizade governem. 

Utopia? Sonho? Pode ser. Pode ser, também, compreensão.  De um sentir bonito por poder sentir, e de um desejo sincero de compartilhar o sentir. A felicidade mora nas pernas do meu marido procurando as minhas, quando nos deitamos, e mora, também, nas falas desconectadas da Juliana e de suas sinceras demonstrações do cuidar.

Ela concorda comigo.

Ontem, vimos juntos o pôr do sol da varanda de casa. E havia um Roberto Carlos cantando: “Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”.

Uma basta!