18.04.2021
Gabriel Chalita
Meu marido diz que vivo sem ele, mas não vivo sem ela. Ela diz que chegou antes. E que deveria ele ser grato por ter ela incentivado o tempo do encontro e os tempos todos que vieram depois.
Eu digo nada. Tenho um marido que me sabe a alma e que perfuma os meus desejos com delicadezas. Nos dias frios, nos apertamos na cama aconchegante e, nos outros, não nos apartamos por sentir que o prazer vive em qualquer estação.
Juliana é falante. Oferece opiniões a rodos. Não há assunto que ela não se ponha a desenvolver. Sabe sobre emagrecimentos. Explica o que é potente para desfazer gorduras. Hélio, meu marido, ri das suas certezas, “Onde você fez faculdade de nutrição?”.
Juliana presta pouca atenção nas discordâncias. E prossegue receitando limões cortados em jejum, misturados com água morna e algumas gotas de um óleo milagroso que ela descobriu com uma comadre bastante sabida, segunda ela.Fato, Juliana pesa um pouco além do que gostaria e se justifica dizendo que tem problemas de circulação.
Gosta de saber de enlaces amorosos. E é capaz de discorrer durante horas sobre o que dá certo e o que dá errado em uma relação. Se diz muito intuitiva. Basta uma mínima informação e ela decide a personalidade do novo pretendente de alguma amiga ansiosa. Decidiu ela permanecer sozinha, depois de algumas incursões em enlaces que juravam eternidade e se desfizeram em histórias mal contadas.
Semana passada, quis ela que Hélio espalhasse a dor de estômago misturando refrigerante, para limpar; com leite, para besuntar. Hélio se perdeu nos risos. Ela ficou ofendida, justificando que leu em diversas revistas científicas. E que, em um grupo qualificado de whatsApp, viu comentários de que os ciclistas de alto rendimento tomam coca cola antes das provas e que os nadadores se aquecem com leite. “Acho que leite de cabra, é fato”, disse ela.
Nos supermercados, Juliana, sempre bem arrumada, puxa conversa. Comenta sobre a escalada de preços e as frutas que caem melhor em cada ocasião. Fala de política, também. Omite opinões sem cerimônias.
É generosa, minha amiga. Se alguém morre, gasta os dias acalmando a ausência. Fez isso comigo, quando meu pai se foi. Hélio diz que ela deveria ter um programa de rádio chamado “Juliana responde”, porque não é possível alguém que não tenha cerimônia nenhuma em opinar sobre os mais diversos assuntos.
Ontem mesmo, no meio de uma conversa sobre finais de semana, disse ela que quem come uma maça por dia não terá problemas com cáries nos dentes. Que a maçã tem um ingrediente de limpeza mais potente do que um caro enxaguante bucal.
Vez em quando, jogamos baralho em casa. Ester joga conosco. Ester é amiga do silêncio e não se importa de ceder o tempo de fala à Juliana. Vez em quando, caminhamos e escolhemos uma padaria para espantar a fome. Sempre juntas.
Concebo a amizade como uma delicadeza do tempo para preencher de sagrado o espaço da existência. O tempo limpa o que deve ser limpo e deixa permanecer o que é forte. O que sentimos uma pela outra é forte.
Eu, também, tenho as minhas esquisitices. E ela não se importa. Finge que não repara. Hélio também sabe das minhas imperfeições e não as valoriza.
Encontro pedaços de papel com escrituras poucas de um amor que faz questão de surpreender pedaços do meu dia. E rimos juntos, o que é prova de que a seriedade do amor não nos distrai do viver. Rimos, também, de Juliana e de suas certezas. E rimos com a Juliana da certeza de que o mundo se ajoelha diante de amores puros e agradece.
Sei que há muitos barulhos por aí e que os sofrimentos estão descolorindo a vida.
Mas me permitam, hoje, compartilhar um pedaço da vida que mora no pedaço do mundo em que resolvemos cultivar de amor.
De semente em semente, florestas são construídas. E isso não é opinião de Juliana. É a esperança que mora dentro de mim. Já pari filhos, já os permiti viverem.
Quisera eu parir felicidades, parir bondades, parir mundos em que o amor e a amizade governem.
Utopia? Sonho? Pode ser. Pode ser, também, compreensão. De um sentir bonito por poder sentir, e de um desejo sincero de compartilhar o sentir. A felicidade mora nas pernas do meu marido procurando as minhas, quando nos deitamos, e mora, também, nas falas desconectadas da Juliana e de suas sinceras demonstrações do cuidar.
Ela concorda comigo.
Ontem, vimos juntos o pôr do sol da varanda de casa. E havia um Roberto Carlos cantando: “Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”.
Uma basta!