A idade do amar

11.07.2021

Gabriel Chalita

Ela mora em frente à minha casa. Falamos pouco. É Darcy o seu nome. O meu, também.
Não faz muito tempo, a surpreendi com um daqueles cigarros que se faz com as mãos. 
Ela, na janela. Eu, também.

Ao longe, observei o desleixo com a vida. O vestido com algum remendo. O lenço por sobre os cabelos mal colocado. A tristeza do mundo inteiro morando em um olhar.

Viúvo, também sou. Minha Adélia se foi dessa doença terrível que silenciou a humanidade. Ainda sofro a ausência do cheiro que me perfumava de alegria. Era descrente Adélia de que o vírus roubaria vidas. Era crente na fala errática dos que brincaram com a vida dos outros. Cuidou pouco de si mesma e se foi, tristemente, sem despedidas. Dizia ela que Deus ajeitaria para que nada de mal acontecesse, e eu dizia que Deus nos deu a inteligência para não cobrarmos Dele o que nós mesmos podemos fazer.

Minha Adélia levou um pedaço de mim. Éramos diferentes até nas escolhas políticas, éramos um na cumplicidade humana de amar sem exigências.  Quando doente ela ficou, preferi que fosse comigo. Desacreditei da vida, quando a vi sem vida. Choro ainda a não conversa, a não presença, o não abraço em anos de noite esquentando a mesma cama de amor. 

Darcy tem a beleza escondida nos seus mistérios. Conheci o Armando, seu marido. Homem de sussurros. Vi nada dos seus dizeres nem dos seus carinhos com a mulher. O cumprimento era com o olhar e, vez ou outra, um aceno discreto.

Fui ao enterro do falecido. E desacreditei de alguma dor maior em sua mulher. Parecia satisfeita com o desfecho. Quem sabe o que vive junto um casal? 

Darcy tem uma filha que mora fora. E que estudou com a minha filha que, também, não mora por aqui. Vive ela só. Eu, também.
Ainda tenho a idade do amar. Darcy mora no número 57. E eu no 66. A soma dá 12. Cismei que significa alguma coisa. 

Não poucas noites, acordei surpreendido com um sonho bom em que fazíamos juntos o cigarro de palha e que, depois, sorríamos como um convite. Na primeira noite, pedi desculpas para Adélia. Sei lá se os mortos entram nos sonhos da gente. Fazia uma semana que ela havia me deixado. Achei que, pelo menos, deveria esperar 12 dias para sonhar com outra mulher.

Se me perguntarem se tem Darcy atrativos que despertem uma paixão, respondo nada. Não sou das externalidades. Cultivo o que mora dentro. E, no silêncio de Darcy, há algo que barulha os meus sentimentos.

O dia em que ela estava com uma garrafa térmica de café servindo a si mesma em uma pequena xícara, fiquei observando a fumaça subindo livremente. O silêncio daquele ritual foi quebrado por um carro de som oferecendo pamonhas. 
Acenei para o vendedor e comprei duas.
Pedi que atravessasse a rua e entregasse uma a ela.  Ela pegou e negou qualquer sorriso. Não comeu na minha frente. Prosseguiu no café e no olhar misterioso. 

Há uma figueira esguia que sombreia minha janela e tenho a impressão de que é para os seus galhos que olha Darcy. Ou então, disfarça ela, de mim, os seus sentimentos.
Percebo que as plantas da entrada de sua casa estão mal cuidadas. Há algumas samambaias que, se podadas, ganhariam mais beleza. Gosto de como elas caem, despreocupadas, pintando de verde as paredes.

Sou bom no cuidar. Pensei em oferecer o que sei, mas voltei a ser o adolescente medroso de antes de Adélia aparecer e nada disse. Pensei em escrever a Darcy, explicando que, talvez, estejam Armando e Adélia conversando por lá. Achei desnecessário.  Estou esperando uma ocasião para atravessar a rua e entrar em seu silêncio. Quem sabe ela tenha uma tosse e eu corra, rapidamente, com um pote de mel?! Ou, então, eu corrija alguma goteira que, em dia de chuva mais forte, perturbe o seu teto?

Nossas idades pouco importam. Importam as carícias que temos condensadas em compartimentos possíveis de serem abertos. Sonho com um caminhar de mãos dadas até a praça que fica na rua de cima.
Sonho em desajeitar os passos para confundir os paralelepípedos que sustentam paradas as nossas vidas.

Gosto  do movimento, do sorvete e do beijo de amor. Dizia Adélia que era eu um romântico das antigas.  Dirá alguma coisa Darcy? Sei que tenho me aprumado melhor. Que voltei a comprar camisas novas e que me barbeio com finalidades maliciosas.  Quero encostar no rosto de Darcy a pureza de um amor na melhor idade.

E quem disse que não há beleza no entardecer?

E quem disse que os sorrisos, nos inícios, não podem ser para dentro?

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