Entre o doce de goiaba e a banana desidratada

16.05.2021

Gabriel Chalita

Mandar no que eu como? Não. Nem os meus filhos mandam. Tenho o corpo que quero ter na idade que tenho. E isso é problema que não compete a uma agregada. Quando tiver tempo, procuro melhor o significado desta palavra: agregada.

Meu filho do meio é meio lento para a compreensão de quem presta e de quem não presta, quando se trata de paixão. 

Valéria não é grande coisa. E não me venham com o apetite de dizer que tenho ciúme do meu filho.

A Janaína, que é a mais velha, se casou com um homem que poderia ter nascido de mim, de tão parecido comigo que é. Meu genro nunca deu palpite no que eu como, pelo contrário, faz questão de me alimentar com guloseimas e com carinho.  Já disse que quero um neto igual a ele. Janaína ri desconcertada. Mas gosta dos delírios da mãe faladeira. 

O Júnior, o caçula, ainda não escolheu. Tem tempo. Espero que não siga a sina da ausência de pensamento do irmão.

Otávio pensa nada. É guiado pela veterinária. Valéria é veterinária, não sei se já disse. Diz ela que gosta de bicho, o que já ganharia de mim alguma aprovação. Bicho, ela não tem. Com a Pipoca, cachorra de casa, ela só brinca quando eu estou vendo. Pensa que eu sou cega. Me faço, às vezes.

A Tereza, que trabalha em casa, concorda comigo. Valéria tem o porte de não se importar com ninguém, além dela mesma. 

Foi, então, que eu me ressenti com o seu comentário sem pertinência. “Dona Dulce, a senhora não deveria comer tanto doce. Se quiser, eu trago um banana desidratada que faz o mesmo efeito”.

“Não quero”, pensei comigo. Não quero de jeito nenhum. Banana desidratada. Ela pode ser magra, mas beleza só o sonso do Otávio para enxergar. Sabe o que me incomoda mais, é que, toda vez que ele fala, ela interrompe. Ela sempre sabe mais do que ele. Ela sempre tem um exagero a mais do que os exageros que os outros contam.

Minha avó dizia que tem gente que sabe, tem gente que não sabe e tem gente que pensa que sabe. Esses são os piores. Essa é Valéria. Não há assunto que ela não pense que saiba. E o indefeso do Otávio diminui a voz para o nosso desprazer de ouvir a voz da Valéria.

Todo o apetite que tenho para o doce de goiaba, que não é desidratada, eu não tenho para a conversa da fulana. Já expliquei para o Otávio o que eu penso. E disse devagar para ele compreender. Ela é nervosa demais. É mandona. Dá broncas nele e isso antes do casamento.

Ele, que não é dado a discordâncias, apenas sorri para mim e diz que me ama. 

E, então, eu deixo as rasuras de lado e me apego ao principal. Um texto que nasceu de mim e que só diz bondades. Ele se forma médico o ano que vem. Trabalha com tanto afinco. Vai ser oncologista. Pesquisa o que pode para diminuir a dor do mundo. Fala sem arroubos, ouve com generosidade e une as mãos ao coração para em ninguém tocar sem deixar um tanto de amor. Um homem desses não poderia encontrar alguém que falasse menos? 

Pipoca não gosta de Valéria. O que, para mim, é uma confirmação das minhas suspeitas. Pipoca é uma cachorra sensitiva. Se ela desconfia, eu desconfio. 

Tereza disse que ouviu um barulho de Valéria reclamando de mim para o Otávio. Que faz de tudo para me agradar, mas que eu dou de ombros para os seus afagos.

Quero afago nenhum dela. Quero verdade. 

E a verdade é que eu crio os meus filhos para a felicidade.

O Otávio é muito diferente quando está sem ela. É mais leve. É despreocupado com as brincadeiras. É inteiro. A Janaína, a minha filha mais velha, que é psicóloga, diz que ou você é você em uma história ou é preciso que a razão explique para o desejo que não vale a pena prosseguir.

Eu concordo.

Perdi cedo meu marido. O câncer o levou sem compreender o vazio sem ele. Abracei meus três filhos. Chorei o que tive de vontade. E decidi viver espantando qualquer desistência. Otávio não diz, mas sei que querer prolongar a vida dos doentes é um aprendizado nascido da dor da partida do pai. 

Éramos os quatro. Meus três filhos e eu brincando de acordar os dias e enfrentar os tempos ruins. Eu levantava batendo panela no quarto deles e cantando alguma canção engraçada. E exigindo alegria. Aprendi com as minhas cicatrizes que alegria é hábito. E ensinei isso a eles. Então, por favor, vou comer o doce de goiaba que eu quiser. E, discretamente, vou rezar para que o meu menino acorde da teimosia de achar que, aos poucos, a Valéria se apruma. 

E olha que eu até acredito em milagres!