Author page: Rafael Costa

NÃO SOU A MINHA IRMÃ

“Foi essa a frase que eu disse em tom de desabafo. Não, Não foi hoje, nem ontem. Faz algum tempo. Faz muito tempo, E por que ainda me lembro? Porque algumas marcas ficam.” 

 
“Perdoe-me, mãe, mas não sou a minha irmã”. 
 
Foi essa a frase que eu disse em tom de desabafo. Não, Não foi hoje, nem ontem. Faz algum tempo. Faz muito tempo, E por que ainda me lembro? Porque algumas marcas ficam. 
 
Minha irmã era a filha perfeita, pelo menos era assim que parecia ser. Ou era assim que eu me sentia. 
 
Eu não sou mãe. Quis ser, mas fui me distraindo com tantos afazeres que, quando acordei, não era mais possível. Meu marido tem dois filhos do seu primeiro casamento. Quando nos casamos, eram eles bastante crescidos. A mãe morreu há muito e, até hoje, observo que ela faz falta. Como morreu cedo, ficou com a imagem de perfeita. A imperfeita sou eu, mais uma vez. 
 
Minha irmã mais velha era uma aluna exemplar, pelo menos era isso que diziam. Não sei ao certo. A diferença de idade impediu que eu testemunhasse essas tais glórias. Foi pianista. Nunca vi. Mas dizem que, aos 4 anos, tocou para uma plateia atônita. Quando eu nasci, ela tinha 11 anos. E nunca a vi tocando. Só uma foto que me irritava pelo lugar de destaque que ocupava. 
 
Casou cedo e teve filhos. Eu demorei a me casar. Ela era mais bonita, disso não há dúvida. Era mais falante. Sempre fui dos cantos. Não. Não tive voz para cantar. Dos cantos silenciosos. Observava, apenas. Ouvi minha mãe dizendo que eu vim por descuido. Eu juro que ouvi. Quando cobrei isso, um dia, ela disse que eu inventei essa história. Que jamais teria dito. Que os pais amam os filhos da mesma maneira. Que eu era a caçula. Que, no máximo, pode ter dito que eu não havia sido programada, mas que, quando soube que estava grávida, ficou muito feliz. Não tenho tanta certeza disso. 
 
Só sei que sempre sofri com as comparações. Frases ditas como “Sua irmã nunca nos deu trabalho”, “Veja sua irmã, ela sempre conseguiu”, “Por que você não faz como sua irmã?”. 
 
Os filhos do meu marido me chamam de tia. Eram crescidos quando nos casamos, já disse isso. Mas conheço outras crianças que chamam a mãe, que não é mãe, de mãe. Por que não fazem assim comigo? Por que não sou tão perfeita? 
 
Meu marido diz que cada um é cada um. Diz quando cobro que ele fala com muito amor da que se foi. Ela era mais bonita do que eu. Sei disso pelas fotos. Viveram juntos por dezoito anos. E ele está comigo há mais de 20. Então, deveria gostar mais de mim do que dela. Um dia, cometi a insensatez de dizer isso à minha irmã. Ela me olhou com a superioridade dos que se julgam sãos. Havia sido apenas um desabafo. 
 
Um dos filhos do meu marido foi o orador da sua turma. Com os pensamentos marejados, depois dos agradecimentos de praxe e dos ditos sobre o futuro, meneou a cabeça, permitiu um brilhar comovente nos olhos e falou da mãe que ali não estava, que ali estava. A mãe permanecia dentro dele. Confesso que compreendi, mas que sofri por ser apenas tia. 
 
Os filhos da minha irmã não foram oradores das suas turmas. Não sei por que digo isso. Se eu tivesse tido filhos, eu os trataria da mesma maneira e não cobraria deles perfeição alguma. Eu os amaria apenas. 
 
Não quero ser injusta. Talvez minha mãe tenha me amado. Talvez os meninos me amem. Mas por que, então, não me sinto amada? O que me falta? Meu marido é um bom homem. Gostamos um da companhia do outro. Nossas conversas não nos cansam como pode acontecer com o acúmulo de tempo. Ele me surpreende com presentes surpreendentes. Mas, vez ou outra, eu sinto que ele só faz isso porque a outra faleceu. Outro erro. Falei isso para minha irmã e ela, a perfeita, sem sensibilidade alguma, respondeu, “Claro, se a outra não tivesse morrido, ele não teria se casado com você. Quer mais chá?”. Fiquei em silêncio. Por que não? Como ela sabe? Se ela não tivesse morrido, ele poderia ter percebido as suas imperfeições. E perguntar se eu queria mais chá, no meio dos meus desatinos, é não gostar de mim. Minha irmã não gosta de mim. S into isso. Só convivo com ela porque preciso. Preciso? Aliás, não sei por que convivo. Ela teima em contar histórias dos seus sucessos e de falar do amor que sempre teve. E eu fico ouvindo. É o que me resta. 
 
Os pais não fazem por mal. Mas se soubessem o estrago que fazem quando comparam os filhos! 
 
Tenho uma foto com minha mãe na cabeceira da minha cama. Será que, de onde ela está, ela sabe o quanto eu a amo? 
 
Publicado no dia 24 de março, no jornal O Dia (RJ). 

ANJOS DA ESCOLA

“Estou cansada. Triste. Queria ter feito mais. Mas quem sou eu? Não tenho o poder dos poderosos. Não tenho como entrar na mente das pessoas e impedir que elas façam o mal. Não tenho nem o poder de decidir o que as crianças precisam aprender na escola.” 

 
Estou cansada. Triste. Queria ter feito mais. Mas quem sou eu? Não tenho o poder dos poderosos. Não tenho como entrar na mente das pessoas e impedir que elas façam o mal. Não tenho nem o poder de decidir o que as crianças precisam aprender na escola. 
 
Fico matutando comigo mesma: mandam decorar tanta coisa e não se preocupam com o que é mais importante. Essas crianças não têm amor dentro de casa. Eu sei disso. É muita violência e pouca conversa. Os pais jogam os filhos na escola e acham que a responsabilidade não é deles. A escola faz o que pode. E é tanta mudança de orientação do povo que tem poder que fico com pena dos professores. E como eles trabalham! Conheço tantos que dão a vida para que seus alunos aprendam, para que cresçam, que ganhem confiança, que sejam felizes. 
 
Eu sou uma mulher que, há anos, trabalha alimentando crianças. Sou merendeira. E gosto do que eu faço. Aqueles olhinhos em busca do que eu tenho para oferecer. Alguns são muito educados; outros, mais calados; outros estão perdidos. Mas alimento a todos, sem distinção. O que aconteceu foi a coisa mais triste que já vi. Que ódio tinham esses dois? O que foi que houve? Alguns dizem que é por causa das famílias sem amor. Outros que é o tal do bullying que sofreram na escola. Outros que é por causa de uns jogos desse negócio de computador que faz com que fiquem matando o tempo todo. Eu não sei. Só sei que foi muito triste. Tem gente que defende que todo mundo possa ter armas. Eu não. Isso não é certo. Gente armada fica mais perigosa. Tem tanta briga por aí. Gente que fica com a cabeça quente e, depois, passa. Imagine todo mundo armado. Meu Deus! É só pensar um pouco. 
 
Eu consegui salvar muitas vidas. Eu e as minhas amigas merendeiras. Conseguimos esconder as crianças. Conseguimos proteger as suas vidas. Mas algumas vidas se foram. Estavam aqui e não estão mais. Fico pensando nos pais chorando. Imagine uma mãe recolhendo as bonecas da filha, arrumando o quarto, juntando as coisas. Imagine a conversa deles na sala. Não. Não está certo. Deus não quer isso. Sou muita religiosa, sabe? Mas não sou das que acreditam que tudo o que acontece é por vontade de Deus. Deus deu a liberdade ao homem. E esses erros, esses crimes horríveis, são cometidos pe la ausência de amor. 
 
Há muito egoísmo por aí. Muita gente que ninguém vê. E que clama por socorro. Eu presto atenção. Quando vejo uma criança mais triste, puxo conversa. Sei de cada coisa! É pai que bate em mãe. É pai que chega bêbado em casa. É mãe que não queria ser mãe e que reclama o tempo todo. É criança que já sofreu todo tipo de violência. Sabe o que é um padrasto se aproveitar de uma menina e a mãe, bêbada, nem tomar conhecimento? 
 
Pois é. Ninguém nasce bandido, não. Deus não faria isso. Vai ficando. Minha mãe sempre me disse isso. A gente tem que dar o exemplo. Com a graça de Deus, minhas filhas são ótimas. Claro que não são perfeitas. Mas elas confiam em mim. Tudo, elas me contam. E a gente conversa. E, se precisar, choramos juntas. Meu marido faleceu não faz muito tempo. Essas doenças não mandam recado. Vêm e levam. E tem a doença da alma. Esses dois estavam com a alma doente e ninguém viu. Tem muita gente com a alma doente. 
 
Estou cansada, sim. Não foi um dia fácil. Quando a polícia chegou, nos abraçamos e choramos muito. Quando eu vi os corpos dos que não conseguimos salvar, chorei mais ainda. Chorei pelas que mataram também. Quanta tormenta na mente deles! Quanta dor! E suas famílias? 
 
Não. Não quero julgar ninguém. Quero rezar, isso sim. Rezar e agir. Precisamos plantar mais amor. Uma escola tem que ser um espaço de paz. Que os Anjos nos inspirem, nos guardem, nos protejam. É o que eu posso desejar. É o que eu posso fazer. 
 
Amanhã, eu volto para trabalhar. Que seja um dia bom. Se eu pudesse colocar pitadas de amor na comida… 
 
Publicado no dia 17 de março, no jornal O Dia (RJ). 

Minha mulher tem Alzheimer

É um privilégio cuidar da mais linda mulher que já existiu, cuidar da que cuidou para que fosse eu o mais feliz dos homens. Prosseguiremos juntos. Nas estações. Se precisar, choraremos. Se precisar, apenas nos olharemos. Mas juntos. Até a partida. 

Saí desgostoso do médico. Sentimentos confusos tomaram conta de mim. Ele tem boa reputação, eu sei disso. Os diplomas que enfeitam sua parede são tantos que eu seria incapaz de memorizar tantos dizeres com tantas assinaturas de tantas instituições diferentes. 

Mal examinou minha mulher e foi logo explicando os exames. Ajustou os remédios e partiu para sugerir o que julgou ser o correto. Julgam demais os jovens. “Será difícil cuidar dela”, disse ele. “Será melhor arrumar um lugar com profissionais capacitados para isso, que tenham forças, entende?” Não, não entendo. Achou-me, ele, velho para a empreitada? 

Odete e eu completamos sessenta anos de casados, fora os três de namoro. São duas vidas que se misturaram, que frequentaram juntas as diversas estações. Desde os primeiros desejos, desde a primeira noite de amor até um amor que se fez terra e que brotou vidas. Tivemos filhos e netos. Um dos netos, apressado, vai nos presentear com o primeiro bisneto, que vai nascer no mês do aniversário de Odete. Nos inícios, viajávamos sozinhos, depois, com as crianças, depois, com as crianças crescidas, depois, sozinhos novamente. Nós e os nossos olhares. Nós e os comentários que fazíamos sobre o que víamos. E depois o deitar junto. E o despertar agradecido. Nós dois e um sentimento revigorado por toques e dizeres 

Disse um “não” lacônico ao médico, mas ele insistiu. Foi como se os diplomas todos penetrassem os seus pulmões para que a voz saísse com mais autoridade: “Daqui a pouco, ela nem irá reconhecer o senhor”. Doeu o que ele me disse. Dor necessária, talvez. “Mas eu a reconhecerei, doutor”. E ficamos em silêncio. Minha mulher estava sentada ao meu lado. Ela sorriu e descansou a vida em meu ombro. Acariciei os seus cabelos e apertei como pude o seu corpo ao meu. 

 
O médico ficou nos olhando. Disse qualquer coisa ainda que julguei melhor não ouvir. Tive saudades do velho Doutor Darwin que nos examinava sem pressa e nos compreendia a alma. Ele chegava em casa, e sua presença já era suficiente para espantar a doença. 

Meu desgosto não é com o jovem médico. Sou professor e sou entusiasta dos que estão descobrindo a vida. Na universidade em que leciono, coleciono histórias de superação, de sensibilidade, de talentos descobertos. Meu desgosto é com a incompreensão. Os apressados falam demais e são descuidados. Não se trata assim uma história de amor. Deixar minha mulher em um canto qualquer para que eu tenha paz, ora, quem me dá paz é o seu corpo junto ao meu, é o seu cheiro, é o seu toque já perdido em uma memória que vai se desfazendo, mas que ainda me toca. 
Quando me levanto e dou um beijo em seu rosto, eu acordo para o fazer. E vou, passos lentos, para a universidade. E termino o meu trabalho regozijante, sabendo que ela estará em casa, que comeremos juntos, que assistiremos a um filme de mãos dadas. Não importa que ela durma, não importa que ela se perca na história. Estamos juntos. 

Pensou ele que seria um peso, para mim, cuidar dela. Um peso? Ora, mudemos o conceito. É um privilégio cuidar da mais linda mulher que já existiu, cuidar da que cuidou para que fosse eu o mais feliz dos homens. Prosseguiremos juntos. Nas estações. Se precisar, choraremos. Se precisar, apenas nos olharemos. Mas juntos. Até a partida. De um ou de outro. Foi assim que escolhemos um dia. Os nossos filhos sempre vêm. E os nossos netos. Mas no silêncio ficamos só nós, deliciosamente nós. 

Vou escrever um bilhete pra ela. Deu vontade. Como fiz tantas vezes. Gosto de debulhar sentimentos em palavras que vão obedecendo ao movimento das minhas mãos e que vão tomando corpo. Ela vai ler. E vai gostar. O amor ultrapassa a compreensão. 

Publicado no dia 10 de março, no jornal O Dia (RJ). 
 

UMA MANHÃ DE CARNAVAL

“As louças estão desconfiadas. Muito limpas. Muito organizadas. Em outros tempos, era tanta gente!”  

As louças estão desconfiadas. Muito limpas. Muito organizadas. Em outros tempos, era tanta gente! Alcides já se foi. Como gostava de carnaval! Era o ano inteiro esperando os dias de folia. Não era de bebida, como muita gente por aqui. Era de alegria. Gostava das canções, do dançar, das histórias que a escola escolhia para contar na avenida. Gostava de gente. De casa cheia. 
 
Ele entrava cantando o meu nome. Meu nome é Maria. Cada dia, ele entoava uma canção diferente com o nome de Maria. Vivemos juntos por quase 50 anos. Faltava pouco, quando os céus resolveram que a canção deveria ser lá. Foi um lindo enterro. Claro que chorei muito, claro que discuti com o sono que não vinha. A cama ficou grande demais. E a saudade, também. Os filhos têm os seus filhos. São atenciosos, mas precisam cuidar do plantio. Amigos, eu tenho aos montes. Mas o que ele queria era uma despedida com cantoria. E foi assim que foi. 
 
Hoje, amanheci sozinha. Eu e as histórias que me fazem companhia. Eles vêm para o almoço. Ontem, foram para a avenida. Devem estar dormindo. Queriam que eu fosse, não fui. Fiquei por aqui mesmo. Rezei um pouco. Chorei. Escarafunchei tanta coisa em mim. Está tudo em mim. O que se foi continua em mim. 
 
Eu gostava de ir ao carnaval com ele. Gostava do seu olhar apaixonado para minha dança. Era para ele que eu fazia. Era para ele que eu distribuía desejos; discretos, mas desejos. E ele sabia. E, quando voltávamos para casa, nos amávamos até o tempo do descanso. E descansávamos juntos prosseguindo no amor. Quando as crianças eram crianças, acordavam-nos querendo brincar. Brincávamos sem preguiças. E era bom. 
 
Nas manhãs de carnaval de antigamente, dividíamo-nos preparando as fantasias. Eram os filhos, os amigos dos filhos, os que chegavam. Quem chegava encontrava sorriso e gostava de permanecer. Eles foram crescendo. Os namoros eram tímidos, nos inícios. Depois, foram brincar nos seus terrenos. E vieram os casamentos, e as presenças misturavam-se às ausências. Compreensível. Assim foi quando deixei a casa dos meus pais e finquei raízes com Alcides. 
 
Não sou da nostalgia. Sou da memória. Se choro, choro por um sentimento bom, por uma gratidão de ter conhecido quem conheci, de ter gerado quem gerei, de ter amado. E de ter recebido amor. Sem amor, somos o quê? Pedaços ínfimos em um universo tão gigante? O amor nos faz gigantes. Somos vistos ao longe. Experimentamos a sensação única de que alguém nos espera. 
 
Ele me esperava. Eu o esperava. 
 
Bem, hora de lavar o arroz, de tirar a sujeira do feijão, de preparar o alimento bom. Daqui a pouco, a casa estará cheia. Não gosto que falte nada. Quero olhar para as crianças e desejar que encontrem quem eu encontrei. “A vida é a arte do encontro”, disse um poeta de que Alcides gostava. 
 
É assim que me encontro nesta manhã de carnaval, disposta a viver com o tempo brincalhão que dança, dança, dança sem nunca se cansar. 
 
Publicado no dia 03 de março, no jornal O Dia (RJ). 

O TEMPO E OS TEMPOS

“Chegamos ao hospital. Pessoas sentadas aguardando a vez. Pessoas saindo. Pessoas entrando. “ 

 
Chegamos ao hospital. Pessoas sentadas aguardando a vez. Pessoas saindo. Pessoas entrando. 
 
Minha mãe olhava-me com confiança e apreensão. Quem gosta de ser submetido a uma cirurgia? Quem gosta de sentir dor? 
 
Suas mãos perderam os movimentos que tantas vezes alimentaram minha vida. Chegava da escola e a encontrava na porta da entrada. Antes de entrar, o abraço cicatrizante com as mãos perfeitas. E a comida que as mãos preparavam. E o adormecer no colo descansador com as mãos dançando cantigas leves nos meus cabelos. 
 
Era assim sempre. Naquele tempo. 
 
O tempo, hoje, é outro. Os tempos de quem tem mais tempo de vida seguem outro movimento. As mãos ficaram cansadas. É preciso reanimá-las. 
 
Entramos. 
 
Os afetos têm poder. Médicos e enfermeiros, quando sabem disso, trazem sopros de alívio ao calor do medo. 
 
Quando minha mãe entrou no centro cirúrgico, um aviso me avisou que somos limitados. Era preciso cultivar o tempo da espera e da confiança e da fé. Tempo demorado esse da notícia que não chega. 
 
Chegou. 
 
E logo depois chegou ela, a mulher que, por primeiro, me ensinou o significado do amor. 
Dormia. Acordava. Dizia esperanças. Olhava. E, vagarosamente, me acariciava. 
 
Os movimentos ainda não voltaram como gostaríamos. As dores ainda insistem em permanecer. Mas o sorriso é de quem não desiste. 
 
Ontem, olhou para a fisioterapeuta com gratidão. O tempo da cura é caprichoso. É preciso esperar. 
 
Às vezes, ela se alimenta sozinha; outras, alimento quem sempre me alimentou. Ela sorri. Do seu jeito. Ela reclama. Como sempre. Ela ama como quem compreendeu. 
 
Andar, ainda não consegue. Vai conseguir. No tempo certo. O bom é que está comigo. Invertemos os papéis. No tempo de hoje, sou eu que experimento o cuidar. 
 
Ouço histórias. Conto outras. Sua memória é soberana. Corrige alguns detalhes do que digo. Alimenta-me com preciosidades que posso ter esquecido. 
 
Hoje, enquanto tomávamos café, ela falou sobre o tempo. Falou do meu pai que já se foi. Sorrimos de umas histórias engraçadas.De como se conheceram, do quanto eles eram apaixonados, dos desertos que tiveram de enfrentar. Perderam dois filhos. Dor insuportável essa. A cena ainda me visita. Na cidade pequena, os sinos choraram tristes. Os passos lentos levaram primeiro um, anos depois, o outro, seus dois filhos. O cemitério fica no alto. De lá se avista a cidade e o rio e a montanha que descansa do outro lado. Descansam eles onde chamam de paraíso. Cansaram meus pais de conversar com as lágrimas. Mas vieram os filhos do meu irmão. E a alegria explicou que a vida prossegue. E a felicidade persiste à dor. 
 
Hoje, a saudade não corta, conforta. Mais um gole de café. E mais histórias. Sorridente, disse que teve medo quando se casaram. Meu pai teve que esperar alguns dias. Naquele tempo. o amor era paciente, era surpreendente. 
 
Vez em quando, paramos no silêncio. E, depois, prosseguimos. E comemos mais. E ficamos alimentados. 
 
Como não gostar desse tempo? 
 
publicado no dia 24 de fevereiro, no jornal O Dia (RJ). 

BIBI FERREIRA, IMORTAL

“Falam dos seus feitos. Os que a conheceram têm histórias para contar. Eu tenho. E não são poucas.” 

“Morreu Bibi Ferreira”, foi o que ouvi quando ainda não havia me dado conta de que parte do dia já havia partido. 
 
O tempo é assim. Soberano. 
 
Morreu a soberana dos palcos. Morreu a dama que ousou ir além dos mortais. Fez-se eterna em personagens, fez-se eterna nas canções. 
 
Piaf reviveu e, também, Amália e, também, Sinatra. Isso, recentemente. A idade não a impediu de reinar. Sua arte foi completa. Dirigiu com afinco, atuou com energia, amou sem economias. 
 
Mexo a cabeça discordando do que ouvi. Não pode ter morrido. Os mitos não morrem, nem as fadas, nem as deusas. Morreu Abigail, Bibi permaneceu. Seu pai a olhou com profecia e sua mãe ofereceu-lhe disciplina. A vida de artista é árdua. Foi ela valente. Não era possível voltar para trás. Não era possível abandonar a razão pela qual ela nascera. E assim é que se deu a sua trajetória. 
 
O bom humor dialogava com a sisudez necessária de quem percorre a perfeição. As palavras não podem ser ditas de qualquer maneira. As canções precisam obedecer ao que vem do alto. E o alto nunca a assombrou. 
 
Nas coxias, a gratidão; no palco, a iluminação; no despedir-se, a consciência de que era preciso permanecer. 
 
As pessoas se vão depois de um espetáculo como Gota D’ Água sorvendo a dor de Joana, da mulher abandonada. Se vão depois de My Fair Lady, cantarolando as canções que fizeram a mulher das ruas acreditar que podia ser florista. Se vão depois de O Homem de La Mancha, marchando em profissão de valentia, contra os moinhos de vento e a favor de um amor romanticamente encontrado. 
 
Bibi operou esses milagres. A palavra foi sua cúmplice. O respeito à palavra e o respeito a quem deve ouvir a palavra. A palavra que ora me vem é “imortal”. 
 
Ninguém poderá falar da tragédia ou da comédia sem se lembrar dela. Do fazer rir ao fazer doer. A alma dói. Dói a dor necessária. A arte não se curva ao imediatismo. Ela resgata o esquecido e acena para o que ainda está por vir. 
 
Bibi foi generosa com os jovens. Lançou esperanças. Imaginou novos tempos, novas formas de interpretar, respeitando a atemporal consciência de que o teatro precisa prosseguir. 
 
Falam dos seus feitos. Os que a conheceram têm histórias para contar. Eu tenho. E não são poucas. 
 
“Eu sei que você está sofrendo de amor, meu amigo, mas posso garantir uma coisa, chegará um dia em que você terá saudade de sofrer de amor”. 
 
“Como assim?”. 
 
“Quando se sofre de amor, sabe-se vivo, quisera eu voltar a sofrer de amor”. 
 
Entre as estrelas, Abigail está amando. E sorrindo o sorriso lindo que acolhia. Basta olhar para o alto que é possível vê-la. 
Quando Procópio, seu pai, escolheu esse nome, decidiu: todos a chamarão de Bibi. 
 
Bibi, a imortal. 
Bibi, a que permanece em paz. 
 
Publicado no dia 17 de fevereiro, no jornal O Dia (RJ). 

Eu e as chuvas

Estava no metrô. O metrô parou. Notícias de alagamento. Pararam as notícias. O metrô prosseguiu. O metrô parou.

Desci do metrô. As ruas viraram rios. Os rios impediam o ir e vir. Havia desconforto por todos os lados. Notícias falavam em deslizamentos e em mortes. Em árvores caídas e em luzes apagadas.

Lembrei que eu reclamei, alguns dias antes, da falta de chuva. Onde moro falta água. Sabe o que é viver sem água? Sabe o que é acordar de madrugada para ligar a bomba e tentar fazer a água da rua subir para a caixa d’água?

Pois é. Há alguns meses eu vivo isso. O banho é sempre muito rápido. Lavar a roupa é um problema. As louças, também. Não tenho dinheiro suficiente para comer na rua. Chego tarde do trabalho e preciso lavar coisas, entende?

Resolvi enfrentar a água e ir caminhando. Os medos vieram comigo. Um fio desencapado. Uma doença. Um troço qualquer caído. Mas precisava ir. O cansaço me avisava que eu precisava de um canto para o descanso. E fui. Outras pessoas foram também.

Fui pelas ruas lamacentas. Fui por necessidade.

Quando fui chegando perto de casa, a água foi se despedindo. Minha rua é um pouco mais alta. Quando entrei em casa, uma alegria veio me dizer que eu era um felizardo. Nada de alagamentos. Só as roupas no varal que precisariam de outro banho. Os galões que coletam água da chuva estavam repletos. Até a caixa d’água resolveu me surpreender.

Tomei o banho que quis. Quente. Sentei no sofá e, como costumo fazer, agradeci. Liguei o rádio baixinho, antes de dormir, e suspirei de tristezas ao ouvir as notícias.

Quantos também vencidos pelo cansaço resolveram voltar para casa e, quando em casa chegaram, casa não tinham mais. E ainda há os que perderam os seus para a enxurrada.

Não sei de quem é a culpa. Não sou estudado nessas coisas. Sei que os homens maltratam muito a natureza. Fazem o que não devem. E, um dia, ela reclama.

Amigos meus dizem que eu reclamo muito. Talvez eu precise melhorar. Todo mundo precisa melhorar. Hoje, não vou reclamar. Moro em um canto simples, mas aconchegante. Tenho onde dormir. Quase sempre tenho água. E nunca perco a esperança.

O que eu peço para as chuvas? Que venham mais equilibradas. Já há gente desequilibrada demais por aí.

Amanhã, preciso acordar cedo. Desligo o rádio e rezo pelos irmãos meus que não têm onde dormir.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 10/02/2018

Quem criou a lama?

“Os desesperos diante da lama demonstram que se perderam. Que os humanos se perderam. E nós, com eles.”
Foi a pergunta que me fiz em meio a um turbilhão que se avolumou sobre tudo que eu podia avistar. Alguns voaram depois do aviso das vozes. Há sons na natureza que poucos conseguem compreender. Até porque não prestam atenção.

Outros, acostumados à liberdade, atingiram velocidades que superaram a lama. Quando cheguei, deram-me um nome. Deram-me um local seguro, um canil ao lado de onde entravam e saíam. Deram-me comida, água. Algum ensaio de carinho. Deram-me a possibilidade de conhecer algumas ruelas que ficavam próximas. Levavam-me, entretanto, amarrado. Tudo para minha segurança. Era assim que diziam. Para que eu não me perdesse.

Onde foi que se perderam?

Os desesperos diante da lama demonstram que se perderam. Que os humanos se perderam. E nós, com eles.

Os meus irmãos criados livres, livremente se foram. Já nós, que servimos para servir, ficamos juntos com a lama. Estão sacrificando as vacas, as mesmas que foram servas, para que não sofram. É isso o que dizem. Devem estar muito preocupados com o sofrimento das vacas e dos bois e dos frangos e de nós, cachorros.

Quem criou a lama?

A paisagem era bonita. Nos vários tons do dia. As montanhas altaneiras não se alteram, descansam soberanas emprestando seu verde. A água nasce limpa. Sem as sujeiras que vão nela depositando. Os rios têm o seu curso. Mudaram o curso. Mudaram novamente. Construíram barragens. Nos rios e nas pessoas.

Vejo o sofrimento nascido das perversidades. O mal mora nos humanos e, disfarçadamente, vai enchendo de lama o que pode. Pode muito.

Eles nos prendem para que possamos dar alguma coisa a eles. Eles se prendem em busca de alguma coisa que nem sabem. E dizem, na sua língua, ditos de ódio. Entre nós, não há ódio. Apenas queremos viver. Apenas nos defendemos. Apenas prosseguimos.

Entre eles, há uma busca de algo que chamam de poder. Uns sobre os outros. O tal dinheiro, o tal lucro, o tal domínio. Eles se matam por isso. E nos matam por prazer.

Por que nos domesticaram? Para nos prenderem quando a lama vem? Há lama por todos os lados. Morreram muitos. Continuarão morrendo. Não a morte que chega no dia que deve chegar. A morte de todos os dias. A morte matada. A morte dos sentimentos. A morte da sensibilidade. A morte da vida.

Eles estão mortos, mesmo quando estão vivos. Nós nos alegramos facilmente. Um alimento bom. Uma água pura. A pureza de um sopro qualquer. Eles, não. Acostumam a terem e, tendo, querem mais. E querendo, destroem outros quereres. E, quando não conseguem, odeiam.

Quem foi que inventou o ódio? E a perversidade?

Gosto do despedir do dia. Porque presto atenção. Gosto dos cheiros que vêm dos verdes. E até dos tons de frio. O calor me incomoda, Nem disso eles sabem. Arrastam-me em dias quentes e me queimam para passear. E de mim esquecem, quando há outros preenchimentos para um tempo sem comando.

Onde estão agora? Onde está o que guardaram? Para onde foram? Para onde irão? Quem são os outros que estão no comando deles?

A água limpa que estava por aqui se foi. Estou sozinho esperando que algo bom possa acontecer.

Por enquanto, ouço apenas a tristeza.

A desnecessária.

Publicado no dia 03 de fevereiro, no jornal O Dia (RJ).

Quem criou a lama?

Foi a pergunta que me fiz em meio a um turbilhão que se avolumou sobre tudo que eu podia avistar. Alguns voaram depois do aviso das vozes. Há sons na natureza que poucos conseguem compreender. Até porque não prestam atenção.

Outros, acostumados à liberdade, atingiram velocidades que superaram a lama. Quando cheguei, deram-me um nome. Deram-me um local seguro, um canil ao lado de onde entravam e saíam. Deram-me comida, água. Algum ensaio de carinho. Deram-me a possibilidade de conhecer algumas ruelas que ficavam próximas. Levavam-me, entretanto, amarrado. Tudo para minha segurança. Era assim que diziam. Para que eu não me perdesse.

Onde foi que se perderam?

Os desesperos diante da lama demonstram que se perderam. Que os humanos se perderam. E nós, com eles.

Os meus irmãos criados livres, livremente se foram. Já nós, que servimos para servir, ficamos juntos com a lama. Estão sacrificando as vacas, as mesmas que foram servas, para que não sofram. É isso o que dizem. Devem estar muito preocupados com o sofrimento das vacas e dos bois e dos frangos e de nós, cachorros.

Quem criou a lama?

A paisagem era bonita. Nos vários tons do dia. As montanhas altaneiras não se alteram, descansam soberanas emprestando seu verde. A água nasce limpa. Sem as sujeiras que vão nela depositando. Os rios têm o seu curso. Mudaram o curso. Mudaram novamente. Construíram barragens. Nos rios e nas pessoas.

Vejo o sofrimento nascido das perversidades. O mal mora nos humanos e, disfarçadamente, vai enchendo de lama o que pode. Pode muito.

Eles nos prendem para que possamos dar alguma coisa a eles. Eles se prendem em busca de alguma coisa que nem sabem. E dizem, na sua língua, ditos de ódio. Entre nós, não há ódio. Apenas queremos viver. Apenas nos defendemos. Apenas prosseguimos.

Entre eles, há uma busca de algo que chamam de poder. Uns sobre os outros. O tal dinheiro, o tal lucro, o tal domínio. Eles se matam por isso. E nos matam por prazer.

Por que nos domesticaram? Para nos prenderem quando a lama vem? Há lama por todos os lados. Morreram muitos. Continuarão morrendo. Não a morte que chega no dia que deve chegar. A morte de todos os dias. A morte matada. A morte dos sentimentos. A morte da sensibilidade. A morte da vida.

Eles estão mortos, mesmo quando estão vivos. Nós nos alegramos facilmente. Um alimento bom. Uma água pura. A pureza de um sopro qualquer. Eles, não. Acostumam a terem e, tendo, querem mais. E querendo, destroem outros quereres. E, quando não conseguem, odeiam.

Quem foi que inventou o ódio? E a perversidade?

Gosto do despedir do dia. Porque presto atenção. Gosto dos cheiros que vêm dos verdes. E até dos tons de frio. O calor me incomoda, Nem disso eles sabem. Arrastam-me em dias quentes e me queimam para passear. E de mim esquecem, quando há outros preenchimentos para um tempo sem comando.

Onde estão agora? Onde está o que guardaram? Para onde foram? Para onde irão? Quem são os outros que estão no comando deles?

A água limpa que estava por aqui se foi. Estou sozinho esperando que algo bom possa acontecer.

Por enquanto, ouço apenas a tristeza.

A desnecessária.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 03/02/2019

Fernanda Montenegro, essencial

Era uma noite de homenagens. Artistas se entreolhavam, aguardando o início do concorrido prêmio Cesgranrio de teatro.

O Copacabana Palace estava iluminado. Pessoas iluminam pessoas.

E eis que surge ela, Fernanda Montenegro. Os aplausos demonstravam o que já era sabido, é ela uma dama das artes, uma senhora da interpretação, uma condutora da dignidade. A música falava da atriz, o poema falava da história, cada ser humano é recheado de histórias. Os anos vão conferindo acordes à canção da vida.

Os apresentadores começaram a chamar os ganhadores. Cada artista, em sua fala, reverenciava a grande Fernanda Montenegro. Ela ouvia atenta, amiga das emoções, chorava sem disfarces. Os olhos firmes. As mãos dispostas aos aplausos. O sorriso emprestador de esperanças. Eu estava perto. É bom estar perto.

E chegou o momento da grande homenagem da noite. Sobe ela ao palco e recebe a mais alta homenagem de uma Fundação que se esmera em promover a educação e a cultura.

As pessoas silenciam as suas inquietudes para ouvir Fernanda. É a primeira homenagem que ela recebe no ano em que completa 90 anos de vida, 75 anos de carreira. Fala com decisão. A voz sobe até onde deve. O tom é de lembranças e de futuro. Mulheres e homens passaram em sua vida nos palcos, nas telas, nas esquinas. Frequentaram os seus sentimentos, beberam as suas dúvidas, brindaram os seus renascimentos. Cita alguns. Lembra Fernando, seu grande amor. Conta histórias divertidas, responde a perguntas que fazem por aí, e toca no grandioso ofício de representar vidas para vidas elevar. O teatro não vai morrer nunca, decide.

Entre aplausos e atenções, os artistas de todas as idades ficam em sinal de reverência a uma das maiores atrizes do mundo. A brasileira que concorreu ao Oscar pelo “Central do Brasil”, que ganhou o Emmy por “Doce Mãe”, a dama de Shakespeare ou de Nelson Rodrigues. A que poetizou Adélia e disse Simone de Beauvoir. A que fez rir, a que fez chorar. A que fez e faz pensar.

Enquanto os olhares e as homenagens desfilavam para ela, Fernanda Montenegro foi além. Agradeceu primeiro. Mais um entre tantos. Agradeceu e o ofereceu a uma atriz que a inspirou a iniciar. “Dedico este prêmio a Bibi Ferreira. A grande dama das artes que o ano passado resolveu se retirar. Ela está aqui, entretanto, em nós, em nossa decisão de prosseguir”.

O gesto de Fernanda é coerente com a sua vida. Lembro-me de quando ela foi convidada para ser ministra da cultura. O poder é sedutor, é envolvente. Dizer “não” ao poder exige muita liberdade. E, livremente, ela agradeceu e reafirmou onde era o seu lugar: no palco. Entre dramas e canções. Entre força e força. É gigante quem decide gastar a vida dando vida a personagens e permitindo a quem vê, ver além.

Além das glórias daquela noite, Fernanda viu Bibi. E mostrou que a grandeza maior mora na humildade.

Saí dali com vontade de viver.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 27/01/2019