Author page: Rafael Costa

TENHO MEDO DE MIM

“Cheguei a essa conclusão. Sozinha.” 

 Era sozinha, até Glauco aparecer. Fiquei viúva cedo e nunca mais quis saber de divisões na minha alma. Meu marido havia sido um homem bom. Calado, mas bom. Morreu de acidente, pouco depois de nos casarmos. Não tivemos filhos. Fiquei derrotada, no início, e depois fui me reerguendo com meu trabalho. Sozinha. Com amigos, mas sozinha. 
 
E o tempo foi escapulindo e, no meu aniversário de 50 anos, conheci Glauco. Em uma praça aqui perto. Na fila da pipoca. Eu, distraída, o atropelei. Ele sorriu e me deu lugar na fila. Eu, constrangida, me desculpei. Ele sorriu. E fez um gesto galanteador. E, quando fui pagar a pipoca, ele não permitiu. E eu permiti que ele fosse chegando. 
 
Em pouco mais de seis meses, nos casamos. O luar varria a entrada da Igreja, e as flores nos perfumavam. Dançamos com a leveza necessária, naquela noite, e fomos amar. E decidimos que viveríamos na minha casa. Glauco era, também, viúvo. Os cinco filhos já viviam livremente, dependendo, apenas, dos afetos do pai e nada mais. 
 
Acontece que minha casa é organizada. Exageradamente organizada. Tenho as minhas manias. Quem não as tem? E Glauco não sabe. E não precisa saber. Ele abre o espelho do banheiro para pegar a escova de dente e deixa a marca do dedo como lembrança. Eu limpo, claro. E, no dia seguinte, a marca está lá, me olhando desafiadora. Suas roupas ficam em exposição. Eu recolho discretamente. Quando acorda à noite, vai ao banheiro do nosso quarto. E faz barulho. Eu, quando acordo, vou ao outro banheiro que há na casa para não causar nenhum incômodo. Já pensei em explicar isso a ele. Desisti. 
 
Vez em quando, ele resolve me ajudar na cozinha. Não gosto, mas permito. Ele é pouco cuidadoso. Ontem, ele derrubou leite na gaveta de talheres. Eu olhei, queimei por dentro, e disse que tudo bem, entre sorrisos. Não quis limpar, enlouquecidamente, para não parecer que sou assim. Mas sou. Não consigo sair de casa sem deixar tudo limpo e organizado. E é melhor que eu faça. Embora eu já tenha explicado que há uma esponja para copos e taças, e outra para o resto, ele confunde. E eu tenho que desinfetar depois. Eu pedi para mudar de horário. Para chegar um pouco mais tarde ao trabalho para lavar a louça do café. E para limpar o espelho. E para ajeitar as coisas dele. Se eu saio antes, fica tudo em desarmonia. 
 
Sim, estou gostando da vida ao lado dele. É bom ter alguém. Gosto de dormir abraçada, embora fique tentando me convencer de que ele lava a mão, quando vai ao banheiro durante a noite. 
 
Há um quadro que ele me trouxe de presente, mas que não combina com os quadros que tenho. Ele sugeriu pendurar em desalinho. Brincou, dizendo que um pouco de assimetria faz bem. Eu concordei sorrindo e escondi o quadro. Os homens costumam se esquecer dessas coisas. 
 
Os filhos gostam de mim. Dizem que é bom ver o pai novamente acompanhado. Acompanho cada passo dele na casa e vou arrumando o que sai do lugar. Às vezes, acho que ele percebe e pensa que é melhor olhar pela janela e lascar um comentário ou outro, que não nos ofenda. E falar sobre o tempo. Ou sobre o frio que não demora a vir. 
 
No último inverno, eu estava sozinha. Era bom. Era eu mesma. Com outras manias, inclusive, que não revelo. Agora, ele está. Antes tinha medo de ocuparem o que era meu, hoje tenho medo de que ele parta. Que não consiga conviver, que eu suje suas intenções futuras de permanecer. Justo eu que sou tão limpa. 
 
Tenho medo de mim. De uma reação mais áspera a uma ação qualquer, que pareça inocente, mas que me roube a tranquilidade. Com o meu primeiro marido, morávamos sozinhos. Hoje, os deixados do tempo moram conosco. Gosto de deixar o lençol cuidadosamente enfiado no colchão. Ele deita e tira. Disse, em voz alta, que não gosta de sentir os pés presos. É tão bom quando ele esfrega os seus pés nos meus e sussurra delícias com que eu já havia me desacostumado. 
 
Hoje, vou fazer uma massa para jantarmos. Vou preparar tudo antes que ele chegue e se proponha a me ajudar. Vou fazer uma torta de maçã, que ele adora. Eu também. Servida quente, com um pouco de sorvete. Antes que o inverno chegue. 
 
Publicado no dia 02 de junho, no jornal O Dia (RJ). 

Dois irmãos

Outras histórias surgiram na minha vida, naturalmente. Nunca fui de soprar querosene em fogo, sou do aconchego. Sou respeitador do tempo e amigo das calmarias. Elas chegam, é só ter paciência. 

 
Faz tempo que aconteceu. Mas até mesmo o tempo fica, quando o que fica faz tão bem. 

Faz bem lembrar, revisitar o que fiz de bem. E o que ficou por fazer. Longe de mim a miragem da perfeição. O barro de que sou feito tem saliências, tem quebraduras, tem remendos. Mas está em pé, como deve ser. E caminha. Sempre caminhou. 

Eram dois irmãos. Eu os conhecia. A cidade era pequena. Os nomes e apelidos estavam em nós. E os cumprimentos. E os encontros. Um bar ali, uma feira com o seu vendedor de pastel, uma partida de futebol em um dos dois times da cidade, um mergulho de rio. 

Havia um beco que guardava mistérios. Não sei por que me lembrei disso agora. Mas, na infância, eu tinha medo. Diziam que os mortos se encontravam ali. Eu, que sempre gostei de cemitério, evitava o beco. 

O tempo foi golpeando e vencendo e voltei à cidade, depois de me formar em Direito. Era um jovem advogado em busca de seus primeiros consertos. Queria consertar o mundo! 

Jerônimo foi preso. Não importam aqui as razões. Foi preso. E, na prisão, foi convencido de que seu irmão, José, era o responsável. Fui estar com ele. Abraçou-me entre grades. Chorou o choro dos injustificados. Jurou vingança. Ouvi. Prometi defendê-lo. Falou-me da vergonha e do irmão que o vendeu como traficante. Ouvi novamente. E, novamente, me fiz compreensivo. 

Saí e voltei outro dia com os argumentos que usaria. Entregou-me ele uma carta, fechada, para o irmão. Chorava de ódio. Pediu que eu lesse, se quisesse. Nada disse. Mas quando saí, li a carta. Era um desabafo de ódios e acusações. Resolvi guardar a carta. Rompantes precisam ser depurados. 

Dois dias depois, ele estava solto. E o irmão foi abraçá-lo. Choraram juntos o choro do amor. Não havia culpados. Havia uma praga chamada injustiça que vem e atrapalha. Jerônimo me olhava com curiosidade. Esperou o irmão sair de perto e quis saber. Eu disse que não havia entregado a carta. Que achei melhor esperar. Ele repousou e, em um abraço agradecido, suspirou aliviado. Pediu que eu a rasgasse, que a queimasse. E disse algo como que “injustiças geram injustiças”. Cegou-se ele na prisão e deixou de ver o quanto o irmão era bom. 

Outras histórias surgiram na minha vida, naturalmente. Nunca fui de soprar querosene em fogo, sou do aconchego. Sou respeitador do tempo e amigo das calmarias. Elas chegam, é só ter paciência. 

Nunca mais os vi. Mudei-me para a grande cidade e, aqui, permaneci. Mas, em mim, permanecem essas histórias. Ainda me comovem. Lembro-me dos erros, certamente. E tento aprender. Mas o que emociona são histórias que a minha história ajudou a amar. 

Jerônimo. José. Nomes sagrados. Os segredos são importantes. Há muita pressa em revelações. Nunca disse nada a ninguém. Queimei a carta. Guardei o ensinamento. Aumentar a dor não é meu ofício. Nunca. Nasci para os alívios, por isso gosto de envelhecer. O passado não me atormenta e o futuro ainda existe. 

Publicado no dia 26 de maio de 2019, no jornal O Dia (RJ). 

O primeiro pedaço

Não sou de ficar choramingando pelos cantos. O passado foi lindo, mas passou. O tempo já escorregou de meus desejos muitas vezes. E eu não pude segurar. 

 
Quando o Nelson era vivo, era fácil. O primeiro pedaço era sempre para ele. E ele fingia surpresa. E ria o sorriso mais lindo que havia no mundo. E me beijava com os lábios lambuzados de bolo. E eu gostava. 

O Nelson se foi. E deixou um buraco em mim. Os meus filhos diziam que eu era uma viúva inteira, que logo estaria ocupada com outro amor. Acho até que diziam para ver minha reação. São muito ciumentos os meninos. Mas eu não quis outra experiência. Não. Preferi viver os filhos e os netos. Gosto até de dançar, de vez em quando, mas nada de começar tudo de novo. Dá muito trabalho, penso eu. 

O fato é que, toda vez que faço aniversário, é esta cobrança: quem vai ganhar o primeiro pedaço do bolo? Para filho, não posso dar. São três. Para as noras, também não. Os netos são sete. Uma amiga deixaria a outra enciumada. Que difícil. Já pensei em dar para a pessoa mais velha ou para a mais jovem, para ter um critério. Já pensei em cortar vários pedaços ao mesmo tempo. 

Sou eu mesma quem faz o bolo. Da família toda. Eu gosto da cozinha. Não me importo de alimentar muita gente. Vez ou outra, eles querem comprar em alguma doceria. Eu não deixo. Se quiserem comer na minha casa, vão comer do meu bolo. 

Sabe que sempre fui boa em decidir? O Nelson deixava tudo nas minhas mãos. A comida. A roupa que melhor lhe cabia. O dinheiro. As contas que deveriam ser pagas. A última palavra do pedido de um filho. É claro que conversávamos, mas ele me olhava com tamanha docilidade e só queria que eu me sentisse dona da situação. E era visível que ele gostava disso. “Sua mãe resolve”, “É ela que sabe”, “Meu amor, o que você decidir está bom”. 

Não sou de ficar choramingando pelos cantos. O passado foi lindo, mas passou. O tempo já escorregou de meus desejos muitas vezes. E eu não pude segurar. O Nelson tinha o costume de caminhar comigo segurando no meu braço. Eu gostava. Era como se eu fosse o seu suporte. Nos últimos dias, seu caminhar era vagaroso. Ele pressentia que o último caminhar se aproximava. Mas não reclamava. Apenas olhava agradecido por ter tanto amor por perto. 

Não poucas vezes, consolava amigos em luto lembrando que a morte é uma certeza indiscutível. Sobre o que viria depois, ele pouco falava, apenas confiava. Meu marido sempre foi um homem de muita fé. 

Lá estou eu no passado novamente. Mas como não manusear as fotos mais lindas da minha vida? Estão em mim. Inteiras. Ontem mesmo, fiquei deitada em uma almofada que ele me deu com um escrito de amor. Gostaria de estar deitada no colo dele, como tantas vezes. 

E o bolo? Ofereço a quem o primeiro pedaço? Não gosto de rasurar afetos. Sempre cuidei para que os três filhos se sentissem amados. Exatamente isso, não basta aos pais que amem os seus filhos, é preciso que eles sintam esse amor, senão correrão o risco de mendigar amor pela vida. Em casa, nos meus erros e acertos, amor nunca faltou. 

Talvez dê o primeiro pedaço para a Carminha que perdeu o marido há pouco. Exatamente. Um pedaço de ternura para aquecer a falta que ele vai fazer. Nos inícios, é muito difícil. Depois também. Mas a gente se acostuma e prossegue. Consolei Carminha como pude. Do meu jeito. De falar pouco e abraçar o necessário. Era de presença que ela precisava. Disse que ainda não estava em clima de festa, mas que viria ao meu aniversário, que iria fazer bem. As outras vão entender. 

Vou usar um vestido azul que o Nelson me deu. Ainda lembro suas palavras na loja, ainda lembro seu olhar. E eu, timidamente, experimentando para ele decidir. “Você é a mulher mais linda do mundo, qualquer vestido fica bom”. Na época, ralhei com ele. E decidi que ele havia decidido. O azul. 

O céu está lindo hoje. Como é bom viver. Se eu pudesse, começaria tudo de novo, mas, como disse, o tempo é arredio e não volta. Fazer o quê? 

Publicado no dia 19 de maio de 2019, no jornal O Dia (RJ). 

Carta aberta para minha mãe

Gabriel Chalita faz uma singela homenagem a sua mãe, que saiu jovem da Síria, de navio, rumo a um país completamente desconhecido para ela: o Brasil.

Em um relato delicado, o autor não apenas relembra alguns momentos de sua vida ao lado da mãe, mas também reflete sobre o significado de ser mãe, a responsabilidade de ser um exemplo para os filhos, a cumplicidade no convívio amoroso, a incondicionalidade da proteção. 

Um porto seguro? Um amor absoluto? Uma fonte de sabedoria? A união soberana de todas as virtudes?

O livro é também uma homenagem a todas as mulheres que gestam a vida, que se dedicam incansavelmente a seus filhos e que amam muito.

Editora Planeta, 2012 (observação: a primeira edição da obra foi lançada em 2006).

A sedução no discurso

Ao abordar a importância do discurso no tribunal do júri, o livro revela características que fazem dele uma eficiente ferramenta de convencimento; destaca, em particular, diferentes aspectos emocionais explorados por advogados e por promotores com o intuito de convencer os jurados da validade de seu papel e de suas argumentações.

Para ilustrar as questões compreendidas nesse processo, o autor vale-se da literatura, do cinema e de casos reais julgados em tribunais brasileiros. Assim, faz do livro uma obra dinâmica, em que o conhecimento e o prazer da leitura se enlaçam de forma inequívoca.

Editora Planeta, 2012 (observação: a primeira edição da obra foi lançada em 2004).

A escola dos nossos sonhos

Dos tempos primitivos à contemporaneidade, esta planta baixa delineia a história da educação. Como quem observa uma paisagem secular, quase contemplativo, o autor deixa escapar, a cada página, breves comentários sobre os principais pensadores, suas ideias e práticas pedagógicas.

Contudo, esse retrato do tempo histórico ganha ao longo do traçado suas cores próprias, especialmente quando a pena que escreve vislumbra o futuro e entrevê uma escola onde alunos e professores sintam-se acolhidos.

Famílias que educam

Diferentes casos, extraídos da literatura e do cotidiano, compõem a viva figura da relação entre pais e filhos, desde a infância até a juventude.

Com uma linguagem ágil, temperada de otimismo e esperança, o autor chama cada um   – pais e professores  – à responsabilidade de educar, com firmeza e amor. Em um passeio em torno da arte da vida, surgem pistas para o ato de conviver bem em famílias e em sociedade. 

Semeadores da esperança

Nesta obra, que busca as raízes do ser, o professor é insistentemente convidado a manter acesa a chama do sonho primeiro de educar; é preciso manter a esperança no aluno, na melhoria da vida, na modificação do mundo.

Assim, confirma a necessidade da humildade para renovar sempre o seu ofício, independentemente das adversidades. Escrito de forma quase poética (apesar de ser prosa), nele cada professor se reconhece um pouco nos comentários, nas situações apresentadas, nos questionamentos e, especialmente, no desafio de se reencontrar com a alegria.

Cozinhando com poesia

Neste livro, textos poéticos de Gabriel Chalita dialogam com deliciosas receitas da chef Eliane Carvalho, do Brie Restô. Entre poemas e reflexões, você encontra 49 pratos feitos com peixes, carnes e muita criatividade. Tudo para que seu momento especial seja recheado de bom gosto e sofisticação.

CARTA PARA MINHA MÃE

“Você escolheu ser mãe. Você escolhe ser mãe todo dia. Todo dia você compreende as minhas imperfeições e prossegue me amando.” 

 Mãe, é seu dia. 
Todo dia é seu. 
 
Há um cordão que jamais foi cortado. Um cordão que liga os tempos da existência. E que se alimenta na energia do amor. 
 
O amor vive em mim como um candelabro de alma. É possível iluminar se eu estiver disposto. Não poucas vezes me canso. E me prendo em outros fios. E não acendo a vela. E me perco nos escuros. E aí me lembro de você. Do seu colo incandescente de força. E me levanto e recomeço. 
 
Você foi mudando, mãe. E permanecendo. Os anos vão trazendo despedidas. A infância se vai com uma pressa que impressiona. E, assim, as adolescências, os desabrochares, os encantamentos efêmeros. Sua força física também se despede, mãe. Os passos são mais vagarosos. O vigor mora mais na sabedoria que nos braços. E você me abraça. Quanta coisa cabe em um abraço! E você me beija como sempre. E falamos algumas falas antigas e outras que descobrimos recentemente. Tentamos dar um ar de novo ao que novo não mais é. E brincamos de futuros, juntos, permanecidos de afetos. 
 
Você escolheu ser mãe. Você escolhe ser mãe todo dia. Todo dia você compreende as minhas imperfeições e prossegue me amando. E me alivia cansaços. E me lança pensamentos para que eu reconstrua o que se quebrou. 
Não há quebraduras em nossa história. 
 
Desde o tempo que me lembro, você celebrou a maternidade. A minha e a dos meus irmãos. Você reclamou a reclamação certa. Sem exageros. Seus cansaços eram espantados com um sorriso nosso. E aí você sorria o sorriso do amor mais puro. Amor de mãe. 
 
Do seio ao colo. Do colo ao engatinhar. Do engatinhar ao caminhar. Do caminhar ao voo solo. E você acenando com lágrimas de entendimento. Cada filho tem o dever de descortinar o próprio mundo. De preencher a humanidade com sua humana vocação. De cantar o canto que você ensinou. 
Sair de casa não é fácil. O ninho é tão bom. Os alimentos que nos robusteceram foram escolhidos um a um por você. E por meu pai. Gratidão à família que me gerou. Saudade do tempo, de todos os tempos vividos. Gratidão, mais uma vez. 
 
O amanhã está batendo à nossa porta, mãe. Só peço que você permaneça comigo para que possamos receber juntos o que vem. Assim fico mais seguro. Assim respiro a felicidade com mais garantia. 
 
Mãe, é seu dia. 
 
Todo dia é seu. 
 
É demais repetir “eu te amo”? 
“Eu te amo, mãe”, com todas as experiências do passado, com toda a certeza do presente, com os medos e as esperanças pelo que virá. 
 
Eu te amo, mãe. 
 
 
Publicado no dia 12 de maio de 2019, no jornal O Dia (RJ).