Sangue no jornal

Gabriel Chalita

Só aos domingos minha família comia carne. O dinheiro não suportava outra possibilidade. Era minha avó quem determinava a ida ao açougue. Quantos anos eu tinha na época? Sete ou oito, talvez.

Gostava nada de entrar no açougue e ver o pendurar de vidas que foram abatidas para alimentar outras vidas. Foi aí que resolvi nunca mais comer carne. Não queria, dentro de mim, aqueles sofrimentos todos. Ficava imaginando os sentimentos arrancados quando um bezerrinho se ia, quando um porco gordo já estava pronto, quando um carneiro engolia o choro para ser engolido por gente desconhecida. Desconhecemos os sentimentos, nós, os racionais, os humanos. 

Se há dor nessas lembranças, há, também, preciosidades. Eu gostava de ir ao açougue e ler o quanto podia do jornal que haveria de embrulhar a carne. O senhor Zé Geraldo me observava. Tinha pressa nenhuma. Deixava que atendesse as outras pessoas. E ia lendo, e ia ficando atento ao mundo que se escondia naquele jornal. Em casa, era difícil de ler. O sangue no jornal embaraçava a história.

Sonhei ser jornalista e jornalista sou. Deixei o interior e vim para a cidade grande. Catar letrinhas. Construir frases. Espalhar ideias. Dei muito orgulho à minha avó, antes de partir. Meu pai não conheci, e minha mãe tinha pouco tempo para me perceber crescendo. Não lamento o que não tive. O que tive foi suficiente para chegar até aqui. 

No jornal em que trabalho, ainda me preocupo com meninos descalços que ficam, em algum lugar, tentando ler. Com mentes que ainda estão em formação. E, por isso, renovo em cada artigo o contrato com a verdade. 

Dizem que sangue no jornal aumenta a venda. Não sei. Desconfio dessas estatísticas. Dizem que é bom inventar algum escândalo. Sou jornalista, não sou inventor. Lamento que colegas de profissão cedam ao engodo do espalhar inverdades. São irresponsabilidades que não acrescento ao meu currículo. Vejo alguns querendo proteger uns em troca de desonestidades. Outros abraçam o erro por preconceito. E há os que são precipitados. Querendo dar o “furo”, cospem inverdades e sujam vidas que são corretas.

Talvez eu esteja ficando velho. Pode ser. Mas a velhice está me encontrando com a mesma compaixão que tinha quando via os olhos daqueles inocentes animais sem vida pendurados no açougue do senhor Zé Geraldo. Não. Ele não era um homem mau. Ele foi apenas se acostumando com a morte.

Eu escolhi a vida para escrever. E, se errei, e, certamente, errei muitas vezes, tive a honra de me desculpar e de prosseguir tentando fazer o certo. Sei do poder que tenho, que nós, jornalistas, temos de povoar as mentes de informações e de conceitos. E, por isso, digo ‘não’ a todo tipo de trama que nasça da perversidade.

Dia desses um assessor de político me trouxe, em êxtase, um dossiê contra o seu opositor. Ofereceu algum presente. Pediu pressa. Apressado fiquei eu em me desvencilhar dessa teia. São doentes os que saem a elaborar astúcias para atingir o outro. Por que não lutamos no campo das ideias? Por que não sugerimos sonhos em vez de lamas? 

Os que comigo trabalham gostam de me render homenagens, mas nem sempre homenageiam com seus atos os valores que tento deixar de herança. Prossigo, entretanto, semeando.

Já não sou o mesmo de ontem, cheio de certezas de que um jornalista seria capaz de mudar o mundo. Já não tenho a mesma aptidão para ouvir desavenças. Sou cuidadoso com o tempo que ainda me resta. Reservo para contar histórias que histórias construam e para amar a que construí com minha mulher, meus filhos e netos. Muito não temos. E, por isso, agradeço. O excesso de coisas torna a viagem mais pesada, mais desconfortável. Já o excesso de conhecimento só alivia a alma, os dias, a vida. 

Aos domingos, minha família conta história e se alimenta de vida.

Publicado pelo jornal O DIA, em 01.11.2020

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