O comprador de verdades

Sempre estranhei os que trabalham com pessoas que não admiram. Gastam parte da vida em ausências de realizações. Transformam a rotina em horror. 

Ele acelerou o dia para desdizer o que eu havia dito. Foi feroz, como sempre. Olhou para o nada e falou comigo. Tenho a impressão de que meu nome não mora em seu receituário de gentes. Nem os meus olhos. Fala, olhando para o alto. E termina sem terminar. Vai andando, atropelando a delicadeza. 

Fico no emprego, porque preciso. Não gosto, mas tenho que admitir. Sempre estranhei os que trabalham com pessoas que não admiram. Gastam parte da vida em ausências de realizações. Transformam a rotina em horror. Eu sempre disse isso. E, agora, faço o mesmo. 

Ele entra no escritório desincumbido de um cumprimento. E se tranca em uma sala onde coleciona verdades. Ele tem o hábito de comprar verdades à vista. Principalmente, se a verdade que está à venda significa algo contra alguém. Se, ao menos, parcelasse. Se, ao menos, esperasse algum tempo para saber. E, com as verdades em mãos, vai em direção ao ataque. 

É usual onde trabalhamos vermos as vergonhas misturadas aos ódios em formas de lágrimas. Falamos pouco. Ele já advertiu que todo o ambiente tem olhos. Olhos de ver o que ele não vê, se apenas olhasse. Se abaixasse um pouco a cabeça e percebesse que não somos inimigos. Foi isso o que ele mesmo disse depois de um dito sem cuidado, “Empregado é inimigo pago, nenhum presta”. E se foi. Ruminando a certeza de que gente é um produto que não deu certo. 

Em reuniões com externos, ele se transveste de bondade. Sorrisos são distribuídos sem economia. Conversas de quem gosta de conversar. Acenos na porta e esperança de reencontros. Já sozinho, despe-se do que não é seu e se põe a novamente agredir. 

“O seu texto está errado”. Com cuidado, expliquei que se tratava de uma citação de um clássico. “Gosto da citação, mas ela está errada! Copie novamente, com mais cuidado”. Em sussurros medrosos, fui mostrar o livro com a citação. Estava certa. “Então, tira a citação. Não gosto da citação”. E, ao perguntar o que ele gostaria que eu colocasse no lugar, gritou impropérios e se trancou novamente. 

Chego em casa em esforço repetido de não rasurar uma história de amor ainda nos inícios. Sou pai recente. Sou marido apaixonado. Sou riso fácil, quando se trata de falar da vida. A mulher que amo é, também, leve. Choramos juntos em filmes singelos. Nos amamos sem hora certa. Basta um respiro e nos fazemos um. Somos um. Um e mais um que chegou propagandeando que gente é um produto de amor. Que dá certo quando se compreende o amor. 

Refaço as contas das horas que faltam para voltar ao trabalho e tenho vergonha de mim. Não fosse meu filho, esperaria nada para dizer que não, para agradecer as ofensas, para aguardar outro emprego. Mas não posso. Filhos mudam tudo. E ser pai é um florescer que sempre desejei. 

Quando conversava sobre o filho que chegaria com um amigo no trabalho, ele veio em nossa direção e balançou a cabeça em desaprovação. “Que estupidez, tem gente demais no mundo”. E saiu sem nunca ter chegado. Quem o educou? O que fizeram dele? Que lodo sujou seu percurso? 

Olho para a minha mulher amamentando nosso filho e uma paz me explica que a paciência saberá me dizer o que fazer. No tempo do fazer. Por enquanto, eu posso agradecer a lua que acaba de iluminar os meus mundos, invadindo delicadamente nossa janela. Minha mulher percebe que é amada e apenas sorri. É essa a nossa verdade. E não foi comprada. Foi em um anoitecer de abril. 

Publicado no dia 10 de novembro, no jornal O Dia (RJ). 

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