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O tempo da sabedoria

Maria é o seu nome. Moradora da Tijuca. Observadora do comportamento humano. Das mudanças que o tempo é capaz de proporcionar.

Tempo de vida, ela tem. No mês que vem, celebra 96 anos de idade. Maria tem gestos marcantes. Anda com cuidado. Já percebeu que a pressa traz tropeços dolorosos. Come vagarosamente. Sabe o valor de cada mastigar. De cada experimentar.

O café fumegante faz Maria esperar. Enquanto isso, corta, vagarosamente, o pão. E sorri o sorriso dos que amam a vida. Maria já teve suas perdas. Uma filha lhe foi tirada por um câncer apressado. Um genro se foi, prematuramente, por um coração que teimou em parar antes.

O marido, ah, sobre o marido, ela tece uma história na outra. “Miguel sempre fez minha vontade”. E, enquanto molha o pão no café, emenda: “Claro que minhas vontades eram sempre boas para a família”.

Fala do pai que já morreu há muito. Conta com detalhes os seus últimos dias. Os filhos, os setes filhos, estavam com ele. Conta que um demorou a chegar. E o pai esperou. Só adormeceu em seus braços para não mais acordar quando estava completo o álbum do amor.

Come um pedaço de pão. A conversa vai para os problemas de hoje. Maria apenas ouve. A filha fala das preocupações de ser mãe, da violência da cidade, do futuro. Maria ouve. Uma amiga diz sobre o mundo que está se perdendo. Maria, depois de um gole de café, participa da história. “Precisamos ter paciência. Aos poucos, tudo se ajeita”. Um sorriso. E o prosseguir: “Oração, falar com Deus ajuda muito”.

Eu observava as suas mãos. As marcas do tempo não tiraram a beleza. Observava o seu olhar enquanto os outros falavam. A atenção ao outro é prova de amor e de sabedoria. Observava o seu texto mesmo quando discordava do que alguém havia dito. Cuidadoso. Sinal de respeito.

Falamos sobre a formatura da neta. Certamente irá ao baile. Sim. “Os acontecimentos da vida devem ser celebrados”. Quando falaram de doenças, ela não alimentou as importâncias. Elas vêm e vão. “Os remédios certos, a paciência e a fé em Deus ajudam muito”. Depois, explicou que a ordem correta é, primeiramente, a fé em Deus.

Maria é uma mulher de fé. O seu apartamento é habitado por histórias lindas e por despedidas. Há pouco tempo, ela fez uma reforma. É preciso pintar as paredes. É preciso distribuir o que não se usa. Nada de acúmulos a não ser o aprendizado que o tempo pode nos proporcionar. Se estivermos atentos.

Estive atento naquele café. Na rua, os barulhos não nos dispersavam. Há barulhos por todos os lados.

Antes de me despedir, ela me pediu que voltasse sempre. Como pede sempre. Eu sempre volto. Porque aprendo. Porque compreendo o tempo da sabedoria. Porque amo estar ali.

Alguns jovens têm nenhuma paciência com os mais velhos. Desperdício. O entardecer nos confere espetáculos grandiosos. É o poder do dia antes das despedidas. Ontem mesmo fiquei mais uma vez extasiado diante de um pôr do sol nas montanhas dos meus sonhos.

Maria é o seu nome. Mora na Tijuca. Mora em muitos outros lugares e está pronta para ensinar. Feliz nome.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 01/07/2018

Os poderes mágicos do chá de Hibisco

Dizem alguns especialistas que o chá de hibisco faz bem, se for consumido de forma moderada. É um termogênico, que melhora a circulação. Ajuda na digestão e impede parte da absorção da gordura pelo organismo. E há tantos outros argumentos que fazem com que algumas pessoas profetizem futuros mais magros.

Márcia e Suzana foram ao shopping. Fazer compras. Suzana é uma amiga e tanto. É presente como se faz necessário ao convívio da amizade. É compreensiva quando a situação assim o exige. E sabe ouvir, o que é fundamental para quem acredita no exercício do amor. Pois bem, Márcia gosta de falar. Fala sem economias sobre os mais variados assuntos. E agora, o assunto predileto é o tal chá de hibisco.

Antes das compras, Márcia cismou que, como vai perder uma quantidade impressionante de quilos, era prudente comprar roupas menores. Suzana argumentou que era melhor esperar o tal emagrecimento. E depois comprariam. Márcia disse que não. Que era impossível não se despedir dos quilos que a incomodavam depois da descoberta do século, o chá de hibisco.

Foram as duas. Antes das lojas, sentaram-se em um café cujo aroma convidava para uma prosa. O atendente veio sorridente tirar o pedido. Suzana pediu um café e uma água com gás. Márcia estranhou, “Só isso?”. Suzana relembrou, “Acabamos de almoçar”. Márcia olhou para o relógio e não comentou a explicação da amiga. “Quero dois pães de queijo, uma empadinha de palmito que só vocês sabem fazer e um café com adoçante”. O moço já se preparava para ir resolver os pedidos, quando Márcia prosseguiu “Humm, me deu vontade de comer um pedaço pequeno de baguete com manteiga”. Suzana apenas olhou. O atendente perguntou: “Cancelo, então, os pães de queijo e…”. Antes que ele terminasse de perguntar, Márcia soltou: “Não cancele nada! Acrescente! E, por favor, já que estamos aqui, quero aquele brigadeirão, que é a especialidade da casa”. Ele anotou e se foi.

“Márcia, não tem como emagrecer desse jeito”. “Fique calma, Suzana, o chá de hibisco queima tudo. Pode comer à vontade, à noite, você toma uma xícara do chá que queima. E quando acorda, outra xícara. Se, por acaso, alguma coisa não queimou à noite, você queima no amanhecer, ainda em jejum. É muito importante estar em jejum”.

Suzana olha, pensa se fala ou se apenas permanece ali, acompanhando. Decide e prossegue: “Quem te disse isso? Algum médico, algum nutricionista?”. Márcia sorri o sorriso das sabidas. “Eu sei das coisas, minha amiga: eu sei das coisas”.

Depois do lauto lanche, foram elas para as lojas. Quando alguma vendedora sugeria que ela experimentasse, imediatamente ela explicava que estava comprando menor para depois do emagrecimento.

Suzana, envolta em dúvidas, perguntava para si mesma se, às vezes, é melhor acreditar em poderes mágicos e prosseguir sorrindo. A vida, afinal, tem tantos dissabores. Enquanto pensava, Márcia explicava que os 12 quilos que não foram convidados partiriam em, no máximo, 3 meses. E mais, pontificava que o correto era dizer emagrecer e não perder quilos. “Porque o que você perde você acha”.

Suzana perguntou por que ela não se matriculava em uma academia de ginástica, poderia ajudar. Além do que, a prática de atividade física faz muito bem à saúde. Márcia riu e se desculpou de não ter explicado a amiga um método revolucionário de atividade física, mágico praticamente. Ela comprou o programa e vai começar a fazer na próxima segunda-feira. “Você fica deitada, coloca uma música, é praticamente um banho de luzes. As luzes que você imagina fazem o exercício para você. No máximo, em 2 meses, você fica com abdômen totalmente definido. É a invenção do século”.

Suzana respira fundo e, em silêncio, rindo para si mesma, feliz de estar ali, acompanha a amiga em mais algumas lojas e depois decide jogar na mega-sena. “Quem sabe o número 12 seria um deles. Hibisco tem 7 letras. Chá tem 3”. E, assim, inspirada naquela jornada, vai escolhendo o número vencedor. Em frente à lotérica, um pastel de queijo acena indelicadamente para aquelas duas.

Qual o problema? Depois, o chá de hibisco queima tudo.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 11/03/2018

Bibi Ferreira, uma inspiração

Era um sábado à noite. O diretor da peça, Tadeu Aguiar, estava na entrada, recebendo as pessoas. Mulheres e homens vinham chegando de lugares diferentes do Rio de Janeiro para assistir ao musical em homenagem a Bibi Ferreira.

Algumas senhoras comentavam sobre os dias difíceis da cidade. A violência parecia ser o ponto central das conversas. Cenas assustadoras compunham um palco de abandonos e malfeitos. A cidade mais linda do mundo estava prostrada. Seus filhos com medo de sair de casa. Quantas vidas interrompidas prematuramente, quantas lágrimas molhando as famílias enlutadas!

No palco do teatro, a cena era outra. A estrela Amanda Acosta é Bibi Ferreira. Impecável. Com ela, um elenco – que sabe o que faz – traz a história de uma inspiradora. Nascida Abigail, elevou-se a Bibi desde sempre. Filha de Procópio Ferreira, sofreu os preconceitos de uma elite que não compreendia o significado do teatro. Proibida de estudar em uma escola, tornou-se professora dos talentos. Deu vida a personagens, com profissionalismo e paixão. O palco sempre foi seu confidente. Dos amores partidos. Das histórias que gostou de contar. Dos desassossegos tantos que lapidam a alma de um artista. Ela é nossa artista maior. Sua voz fez renascer Piaf, Amália, Sinatra. Sua atuação ensinou que “qualquer desatenção pode ser a gota d’água”. Fez mais. Cantou os excluídos em “My Fair Lady”, o glamour em “Hello Dolly”, a saudade em tangos espanhóis. Apresentou programas de televisão. Entrevistou com conteúdo e elegância. Viveu e vive a vida como um presente de Deus. Os fracassos, exigiu que partissem rapidamente. Nunca teve tempo para lamúrias. Os sucessos, recebeu-os com humildade. Generosa, dirigiu e incentivou tantos outros a prosseguir. A buscar o melhor em cada um deles.

A peça terminou. Que pena. Na plateia, os aplausos eram de gratidão por estarem ali. As senhoras que falavam sobre violência, antes do espetáculo, comentaram sobre a saudade de um outro Rio de Janeiro. Mais romântico, mais vagaroso, mais humano. As expressões franzidas deram espaço a sorrisos. Disse uma à outra: “Nossa, como eu estou leve, como esse musical me fez bem”. Eis a resistência!

A arte é redentora da humanidade. É a porta-voz da elevação. Estamos ajoelhados diante dos medos e da ausência da esperança. A arte nos põe de pé. Ela nos faz olhar para o amanhã. Para “O homem de La Mancha”, também vivido por Bibi, levando-nos a prosseguir quixotescamente, enfrentando moinhos de vento e muros de horror.

Sim, os erros dos que exercem o poder constroem muros que separam pessoas. Umas das outras e elas de seus sonhos. Bibi Ferreira é também uma construtora, mas de inspirações. Aos 95 anos, empresta sua voz e seu talento para trazer a tal leveza que aquelas senhoras comentaram ao final do espetáculo.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 25/02/2018

As cinzas e os dias que virão

Havia uma penteadeira com algumas gavetas que guardavam algumas fotografias. Havia também alguns livros antigos e algumas agendas de papel. No chão, ao lado da penteadeira, algumas listas de telefone. Ana não sabia por que ainda não havia jogado fora. Eram acúmulos e acúmulos em uma casa pequena. “Pequena era a vida”, pensava ela. Tudo havia passado tão depressa. Olha alguns álbuns e se recorda de algumas datas. O pai era muito religioso. Livros de oração e de novenas também foram se acumulando. Joaquim já morrera há 20 anos. “Nossa!”, assusta-se ela. Ah, o tempo!

Vê livros antigos de antigas campanhas da fraternidade. Olha para o relógio e decide que vai à missa. O pai gostava de explicar o sentido da quarta-feira de cinzas. Iam todos. O pai, a mãe, os 2 irmãos e Ana. E voltavam com o sinal na testa.

Era ainda pequena quando o pai dizia que as cinzas significam a nossa fragilidade. “Um tombo, apenas, e nossa vida, aqui na terra, termina”, era o exemplo que dava o pai. “Somos frágeis”, insistia ele.

Recorda-se Ana de que a expressão que se usa nesses dias é algo como isso: “Lembra que és pó e ao pó retornarás”. Ela não entendia direito a relação do pó com a fragilidade humana. Nem com a história do tombo. Quando criança, achava lindo tudo o que o pai dizia e sorria para ele. Na Quaresma, tempo que se inicia na quarta-feira de cinzas e que prepara a Páscoa, acostumavam-se a fazer algum tipo de sacrifício. Não comiam carne, não bebiam. E cada um escolhia algo de que gostava muito para deixar de comer por 40 dias. Ana escolhia o chocolate, depois se arrependia, mas seguia fazendo o tal do sacrifício. O pai explicava que era para sentir a falta que sentiam aqueles que não tinham alimentos. É disso que ela se lembra. Além de outros ensinamentos bonitos do pai.

Falar mal de alguém era errado. Fazer mal para alguém, também. Se as cinzas representavam a nossa fragilidade e a necessidade de sermos humildes, os dias que seguiam tinham de ser a vivência desse ensinamento. Foi nessa família que Ana cresceu e envelheceu. A mãe morreu quando ela ainda era menina. Os irmãos tomaram o seu caminho. Encontram-se com alguma frequência, mas cada um tem a sua família. Ana não se casou. Gosta da vida que leva. Aposentou-se como secretária em uma grande empresa. Tem algumas economias, não muitas, mas o suficiente para viver com dignidade. Gosta do bairro em que vive. Gosta de andar a pé. De ir à padaria, ao mercado, à farmácia, à igreja. Hoje, tem medo da violência que vem crescendo e levando embora vidas e esperança. “Os tempos andam sombrios”, pensa ela. Falta Deus no coração das pessoas.

Ela olha para a foto do pai, novamente, e viaja para os dias passados. Rezavam antes das refeições. Rezavam antes de dormir e quando acordavam. O pai preferia ser enganado a enganar, injustiçado a praticar injustiça. Era um homem bom. Decididamente, era um homem bom. Ela se lembra disso. Coisas do passado. Coisas que não passam.

“Todos nós morreremos”, prossegue ela nos seus pensamentos. Por que, então, a arrogância, por que o desprezo ao outro, por que nos acharmos melhores?

Decide ligar para os irmãos para combinarem alguma coisa. As fotos aumentaram a saudade. Os que se foram podem ser revisitados no baú das lembranças, mas os que estão aguardam algum aceno. Na missa, rezaria pela alma dos pais. “A fé melhora as pessoas”, balbuciava ela.

Lembrou-se da tia doente. A única irmã do pai ainda viva. Amanhã mesmo faria um bolo de coco com abacaxi para adoçar o seu entardecer.

As cinzas. “Sim, as cinzas e os dias que virão”, pensa ela. “Serão melhores. Serei melhor”, decide. Sempre há tempo para melhorar. Ana fecha a gaveta e abre um sorriso lindo, lembrança de alguma história que a visitou.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 18/02/2018

Domingo de carnaval

O dia amanheceu preguiçoso. É domingo. É domingo de carnaval. Em um ponto alto da cidade, uma tal Maria engole o seu café com leite e pensa no desfile da sua escola de samba. Foram meses de preparação. Maria trabalha como costureira. E, desde sempre, desfila usando a fantasia que ela mesma produz. A cada ano sua escola conta uma história. Sua escola e, também, as outras.

Desfilam na avenida personagens, lugares, intenções. A música já está decorada. Sambar, ela sabe muito bem. O carnaval faz reviver, nas memórias de Maria, vidas que se cruzaram com a sua. Amores que já se foram. Decepções. Vibrações. Quanta história o seu barraco já presenciou. No morro, ela canta os sambas antigos.

O marido era baterista. Morreu dessas mortes que ainda existem aos montes. Bala perdida. Perdeu Maria, naquele dia, um pedaço significativo do seu coração. Era cedo demais para despedidas. Morreu ele em um dia ensolarado. Num mês de agosto. Véspera do dia dos pais. As duas filhas de Maria cresceram sem pai. A vida foi e é dura para elas. O tempo foi cimentando ressentimentos. E a alegria voltou a iluminar as manhãs daquele barraco. A memória do pai ainda vive ali. O nome do pai está no filho da filha mais velha de Maria. Ah, Maria tem seis netos. Vão todos juntos desfilar na escola de samba.

Maria gosta de costurar. Fala sozinha enquanto ouve o barulho da máquina quase nova. A velha ainda mora na casa em caso de necessidade ou apenas por uma recordação do tempo dos inícios. A nova, mais moderna, foi presente da segunda filha. As três mulheres viveram sozinhas durante algum tempo. Até que o tempo trouxe os seus maridos. Maria não quis se casar novamente. Teve alguns enredos breves, mas preferiu dormir apenas com suas lembranças. Gosta é de carnaval. Não é dada a bebidas. Não precisa delas para se alegrar. Insiste que gosta de cantar os sambas enredos de outros carnavais. Cada um contando uma história. Explica que acha lindo, em tão pouco tempo, dizer tanta coisa em uma avenida. Suas clientes levam roupas para serem arrumadas e sonhos para serem realizados. Costura Maria vestidos de noiva e rompe rasgos causados por quedas ocasionais. Costura botões e faz bainhas. Inventa modelos e ouve ideias. Fica ali entre panos e linhas se esmerando na arte de embelezar a vida.

Às noites, vai à oração ou aos ensaios de carnaval. Não acha que sejam incompatíveis. Pecado é fazer mal ao outro. E fazer mal se faz em igrejas ou em escolas de samba. O bem, também. Apesar da dor da perda do marido e de tantas outras que foram chacoalhando os seus sentimentos, Maria se alimenta de bondades. Gosta de gostar das pessoas. De surpreendê-las com alguma gentileza. De sorrir um sorriso profético. De dias melhores. De tempos menos duros.

Fez ela o vestido de casamento das duas filhas. Fez as primeiras roupas dos primeiros netos. Fez fantasias de tantos mestres-salas e porta-bandeiras que nem se lembra. E as roupas de comissões de frente. E as dos integrantes da bateria. Bateria. Quando pensa nisso, enxuga uma lágrima teimosa que a faz lembrar do seu marido experimentando, ano a ano, as roupas que usaria para desfilar na avenida.

Na avenida da vida, Maria resolveu nunca deixar de estar. No seu jeito simples de viver os carnavais e todos os outros dias. Enquanto engole o café com leite, Maria olha para o pão com manteiga e se delicia com o prazer de poder se alimentar. Cantarola sozinha o samba-enredo deste ano. Para um pouco, Olha para o dia que está nascendo e agradece a Deus por estar viva. E por viver mais um carnaval. Daqui a pouco a casa estará cheia. As filhas moram perto. E as histórias moram junto.

O dia amanheceu preguiçoso, mas vai demorar para ir embora. É carnaval…

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 11/02/2018

Dia da saudade

O dia 30 de janeiro é o dia da saudade. Assim decidiram. Só não podem decidir que seja este o único dia em que se possa sentir saudade.

Rubem Alves dizia que “a saudade é nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”. Voltar ao tempo da inocência? Voltar ao lugar em que imaginávamos que todos fossem bons? Voltar à antiga fotografia, quando estava ela completa, quando ninguém havia partido? Voltar ao olhar que tínhamos, quando pela primeira vez nos apaixonamos? Voltar aos ditos envergonhados quando queríamos saber o que depois de algum tempo virou rotina?

A saudade tem o poder de perfumar a rotina? Um andar de bicicleta acompanhado. Depois de termos aprendido. Um nadar de rio. Um procurar quem surgiu e desapareceu. Um tentar entender o sentimento que nos assalta e que muda nosso estar no mundo.

Saudade da paixão. Da paixão cortante que nos fazia provar que estávamos vivos. Um banho de mar. Saudade da primeira vez que vimos a imensidão do mar. Suas águas caprichosas. O ir e vir. O trazer e o levar. O apagar. O recomeçar. Saudade do sol se espreguiçando e anunciando novidades ou de sua despedida. Sabe ele a hora de partir. E lá vem a noite e seus mistérios. Saudade dos anoiteceres acompanhados. A foto pode estar com alguma ausência, mas a memória a guarda como se guarda uma preciosidade.

Saudade de acreditar em amor. De acreditar em verdade. As mentiras foram chegando, uma a uma, e desmoronando sonhos e nos apresentando pesadelos. Saudade de uma noite de sono bom. Quando a preocupação que tínhamos era um jeito novo de brincar. Apenas isso. Saudade do colo da mãe. Saudade do choro do filho. Saudade das mãos do pai. Saudade do engatinhar. E os aniversários festivos. E os natais alegres. E as comidas feitas com temperos de conversas. Era bom estar na cozinha. Os calores nos aqueciam.

Saudade das músicas de ontem, que nos resgatam tempos, que nos rasgam sentimentos. Até dos choros se pode ter saudade. Bob Marley disse sobre a saudade. que “é um sentimento que, quando não cabe no coração, escorre pelos olhos”. Saudade do tempo que veio antes do endurecimento. Chorar era bom quando ainda não tínhamos vergonha de expressar os sentimentos.

Saudade da liberdade. As amarras foram surgindo e nos prenderam desprevenidos. Onde estão as chaves que abrem as fechaduras para que possamos novamente sorrir? Saudade do sorriso. Do sorriso sincero nascido de um gesto simples de um cotidiano simples repleto de significados. Saudade de não precisar explicar nem entender, apenas viver.

Saudade de dançar sem precisar comparar com outro dançarino para saber quem dança melhor. Apenas se entregar, se divertir. Sem preocupações nem ameaças.

Saudade de mim, antes das tormentas. Tormentas que talvez tenha eu mesmo autorizado.

E, então?

A saudade é sobre o ontem, mas é uma inspiração para o que ainda virá. Sempre vem. Enquanto estamos vivos, sempre vem.

Que o hoje seja como um dia sonhamos. Para que amanhã uma lágrima de emoção nos acompanhe quando olharmos para o que agora estamos decidindo, fazendo.

Hoje também é dia da saudade.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 04/02/2018

Estou satisfeito

“Estou satisfeito, muito obrigado”, foi a resposta de Sergio quando insistiram que ele comesse mais um brigadeiro. Fernando, envolto em apetites, brincou, “Eu nunca estou satisfeito, sempre quero mais”.

Falavam eles sobre brigadeiros. Falamos nós sobre a vida. O que significa estar satisfeito? O que significa nunca estar satisfeito?

Há pessoas que se alimentam do que é necessário, inclusive para o seu prazer. Há outras que, insatisfeitas, se lambuzam em desejos intermináveis. E se avolumam de descartáveis.Querem tudo em excesso. Os olhos não cessam de buscar o que falta. Sempre falta para quem não gasta algum tempo educando o olhar.

Há pessoas que vivem uma história de amor, mas não valorizam. O olhar quer uma outra história, mais perfeita talvez. Histórias perfeitas são ilusões dos que, como dissemos, não sabem olhar.

Há os que vivem em um lugar e gostariam de viver em outro. Não estão satisfeitos. Falta alguma coisa. No lugar? Ou em algum lugar dentro deles mesmos?

Há os que trabalham e lamentam pelo trabalho que fazem. Gostariam de outra coisa fazer. E, quando conseguem, prosseguem na trajetória da insatisfação.

Há os que escolhem uma viagem. E, no meio da viagem, conversam com alguém que está em outro lugar e que descreve o outro lugar como um paraíso. Insatisfeitos, lamentam a escolha. Poderiam estar onde não estão.

Há os que olham os amigos dos outros e desejam ter amigos assim. Não estão satisfeitos com os amigos que têm. Volta a tal da imperfeição.

Há os que sonham com o pai que não têm ou com um filho que pudesse ser diferente. Com pessoas ou coisas, estão sempre nos queixumes. ​O quarto poderia ser um pouco maior. O carro poderia ter um som mais potente.

Diante do espelho, as insatisfações prosseguem. Dez centímetros a mais de altura seria o ideal. Seria mesmo? Ou continuaria faltando algo? 5 quilos a menos faria toda a diferença. Faria mesmo? Ou a insatisfação continuaria cobrando outras medidas?

Fernando tinha apelido de “querêncio” quando era criança. Queria tudo. E encontrava alguém para dar. Os pais não gostavam de vê-lo insatisfeito. De satisfação em satisfação, Fernando não aprendeu a sorver o bom de ter o que se tem. O bom de celebrar o que se conquistou. O bom de compreender que o outro é o outro, e as coisas do outro dizem respeito ao outro, e as minhas coisas foram conquistas árduas que aumentam o meu valor.

​Sergio gosta da vida que tem. Com os solavancos que leva. Com as ausências, comuns em todas as vidas. Com o que amealhou de amigos e de bens. É assim que ele é. É assim que ele conseguiu lutar para prosseguir sem exigir mais que o necessário.

​Fernando come sem prestar atenção. E rapidamente engole um, dois, três brigadeiros. E continua a conversa, sem nada dizer. Sergio olha para o brigadeiro, alimenta-se com o que vê, e depois, calmamente, delicia-se com o seu sabor. Histórias banais de cotidianos ajudam a pensar em escolhas maiores, em posturas, em valores.

Antes de olhar para o lado e alimentar de desejos a vida que não temos, vale educar o olhar para as memórias e as possibilidades, para aquecer o presente de gratidões de ontem e de esperanças do amanhã. Sem ilusões. Apenas com sonhos. Com bons sonhos de satisfação.

Por: Gabriel Chalita (fontes: Diário de S. Paulo e O Dia – RJ) | Data: 28/01/2018

Um dia bom

“Que dia é hoje?” – perguntou Eliane para sua nora. “Dia 17”. Eliane deu um sorriso. O sorriso de Eliane sempre foi muito bonito. “Dia 17”, repetiu ela e prosseguiu: “Um dia bom para morrer”.

Eliane lutava contra um câncer há algum tempo. O marido se foi assim. Vencido pela doença. Ela sabia que os dias por aqui estavam terminando. Mas continuou brindando a vida. Pediu ao filho uma viagem de navio. Lá foram eles e a cadeira de rodas, e as dores e o sorriso de Eliane. Pediu para sair do hospital para comprar um presente especial para a única neta. Sabia que não a veria crescer. E comprou uma jóia, um colar com um coração.

Eliane, no hospital, pediu à nora que ligasse para algumas amigas. Com as poucas forças que restavam, agradeceu uma a uma. E se despediu. Esperou os filhos chegarem. E, também, o único irmão. E sorrindo agradeceu. Depois adormeceu.

O dia estava realmente lindo. O sol aquecia a terra sem preguiça. A família, naquela cama de hospital, e a despedida. Os dois filhos de mãos dadas com a mãe. Cada um viajava pelo passado. Conversaram um pouco. Ela ainda respondia. Falaram de comida, de viagem. Brincaram lembrando estripulias de um e do outro. Ela os olhava com orgulho. Mãe é mãe.

O sorriso de Eliane continuará a existir na memória deles. Mas existirá muito mais lindamente no que não conseguimos compreender. O Colo do Pai é infinito. E amoroso.

Depois do hospital, a nora foi explicar à filha pequena que a vovó havia partido para ficar no Céu junto com o vovô. Foi dizendo com os cuidados necessários. Com a ajuda dos filhos de Eliane. A menina, Mariana, com a sabedoria dos seus 4 anos, não demorou a responder. “Entendi. Agora ela foi viver mais perto de Deus”. Disse e saiu correndo para o quarto. Pensaram que ela fosse chorar. Não. Foi pegar o colar, presente da avó, o que tem o coração. Aquele que ela foi comprar, usando uma peruca e sentada em uma cadeira de rodas, enganando a dor com seu sorriso.

A criança, Mariana, talvez compreenda o que muitos adultos esquecem. Sobre o colo de Deus. Sobre a vida que não se encerra por aqui. Sobre o sorriso que fica ainda mais lindo quando compreende, enfim, que a vida é mais forte do que a morte.

Por: Gabriel Chalita (fontes: Diário de S. Paulo e O Dia – RJ) | Data: 21/01/2018

Cacos de Vidro

Ao longe, Talita viu um brilho diferente vindo do chão. Do mesmo chão que sustentava o engatinhar de seu primeiro filho, André. Olhou, novamente, e, de pronto, levantou-se. O menino já estava se aproximando do que brilhava.

“Cacos de vidro, são cacos de vidro!”, disse e repetiu Talita para Vinicius, seu esposo.

“O que foi, meu amor?”, perguntou ele da cozinha.

“Cacos de vidro. Ele podia ter se cortado. É muito perigoso!”.

A mãe de Talita estava com o marido na cozinha. Ouviu a gritaria e veio acudir.

“Mãe, alguém quebrou alguma coisa aqui. Imagine o André todo machucado, todo cortado. Imagine se ele tivesse colocado na boca, se estivesse engolido”.

“Calma, minha filha, não aconteceu nada! Você conseguiu protegê-lo”.

“É, mas há alguém descuidado nesta casa”.

A mãe de Talita pegou o neto no colo e começou a brincar com ele. “André, na sua vida, muitos cacos de vidro estarão no seu caminho. Nem sempre sua mãe estará por perto. Algumas vezes você poderá se cortar”. “Não diga isso, mãe, vai traumatizar o meu filho!”.

A avó continuou a brincadeira. Teve ela quatro filhos, Também se assustou com as primeiras quedas. Também se agitou querendo estancar cada dor. Mas, aos poucos, foi compreendendo que os cacos de vidro se multiplicam com o passar dos tempos. Há algumas vacinas para dores mais agudas. Há ensinamentos que nos trazem precaução, proteção e ação. Isto porque mesmo os precavidos e protegidos se cortam. E, cortados, precisam agir. Ou isso ou o sangue jorrado ganhará gosto, e uma vida será esvaziada. Ou isso ou a entrega pálida diante da primeira dor. De qualquer dor.

A mãe de Talita, avó de André, quis aproveitar a ocasião para trazer algum frescor em vidas ainda frescas. É bom ver pais se preocupando com filhos. É bom que se debrucem sobre o que faz bem e sobre o que faz mal. É esta a arte da educação, ensinar desde cedo a gostar das coisas corretas e a desgostar do que é errado. E, além disso, despertar o indispensável sentimento da bravura. Não da rabugice. Não da violência. A bravura que desenha na mente dos Andrés a necessidade de ficar em pé e de, se cortado, prosseguir, sem se entregar ao sangue ou à dor.

A mãe de Talita acompanhou as dores dos seus filhos. Com eles, falou muitas vezes sobre dignidade, sobre amor próprio, sobre confiança nos dias que se seguem, Cortes, tiveram eles. De amores não realizados, de trabalhos equivocados, de amizades interesseiras. Cortes, tiveram eles de dores que pessoas causam em pessoas. Mas resistiram bravamente. O pai morreu cedo. Doença apressada. Doença insensível que não respeita a harmonia de uma família. Choraram juntos. Cortaram-se nesses cacos que o destino permite. No vidro da casa, viam os dias de chuva e se lembravam do que não tinham mais.

André, o primeiro neto. Nome do avô. Uma homenagem de Talita. Os filhos foram se ajeitando na vida, cumprindo cada um o chamar da vocação. De obstáculos em obstáculos, foram mesclando dias de proteção com dias de malabaristas. A mãe nem sempre pode estar por perto. Mas seus hábitos os habituaram a prosseguir. Era este o mantra: “Prossigamos. Caídos ou levantados, prossigamos. Cortados ou inteiros, prossigamos”. Cria ela no poder de cicatrização que o tempo oferecia. As dores de ontem, ela guardava em uma penteadeira ao lado do coração. Sim, porque, se ficassem todas no coração, não sobraria espaço para canções mais felizes.

Vinicius pega o filho no colo, sorri de gratidão por ser pai e cantarola uma cantiga que o seu pai cantarolava. Talita olha para o filho e o marido e chora. A mãe sorridente conclui: “Como é gostoso chorar de emoção”.

O sol atravessa a janela. É verão. E um novo ano ainda engatinha e avista cacos de vidro pelo caminho.

Por: Gabriel Chalita (fontes: Diário de S. Paulo e O Dia – RJ) | Data: 07/01/2018

Gratidão

Gratidão ao ano que se despede.

No amanhecer deste dia, deste último dia do ano, as águas e suas espumas sobem até as areias e limpam e refrescam e anunciam que, em instantes, voltarão. É o mar e o seu ir-e-vir. É o mar e os seus trazidos, deixando e apagando marcas.

No amanhecer deste dia, deste último dia do ano, as montanhas percebem a chegada do novo. O sol vai se espreguiçando e ganhando forças. A luz do que esverdeia desenha a esperança que inspirará os novos poetas. Há animais que barulham aqui e acolá. Cada um fazendo o som que sabe.

No amanhecer deste dia, deste último dia do ano, as grandes cidades, que não dormiram, acordam. Há movimentos ininterruptos de gentes e de ruídos. Há luzes que se acendem e há luzes que se apagam como nos vagalumes lá no campo, como nos brilhos que se vê nos clarões de sol e mar.

Uma mãe ensina ao filho que é preciso agradecer. Diz isso com a responsabilidade de quem amansa os erráticos que estão por perto para ferir. Agradecer ao que recebeu de presente, agradecer à passagem que foi dada, agradecer ao alimento que faz crescer.

Um paciente, que teve uma mãe que o ensinou a agradecer, agradece ao médico o alívio da dor, o cuidado generoso, o conhecimento despejado como forma de ação. Ora um padre na Igreja. Fala da gratidão como um valor dos que sabem que a vida é dom, que dom é presente, que presente se recebe e se agradece e se cuida. Cuida da vida de tantos a professora que agradece aos alunos pelo privilégio da troca, dos encontros, dos crescimentos comuns. Ensinar a aprender é um dos ramos mais bonitos que brotam na árvore da vida.

Agradece o agricultor que faz dos seus dias um semear. O entregador de cartas que gasta dias e dias a procurar, a encontrar. O que coze os alimentos também agradece. Olha cada prato e imagina os que hão de estar satisfeitos. E quem come agradece. O comum e o diferente. O que vem sempre e o que surpreende. Surpreendidos, agradecem aqueles que em meio ao medo recebem um salvador de vidas. Nas águas ou nas estradas que assistem acidentes. Nas casas ou nos perigos que queimam.

Agradecem os que vendem aos que vêm para comprar e os que compram aos que têm para vender. Os que precisam ir agradecem aos condutores, os que precisam permanecer agradecem aos compreensivos. Agradece o que dedica a vida ao direito, pela compreensão de que a liberdade é mais nobre do que a vingança e de que o poder é um sopro para espantar as sujeiras e não para se enlamear de vaidades.

O pai que perde o filho agradece o tempo da convivência. O que não perde agradece o tempo da responsabilidade. Terá de acompanhá-lo nas trilhas necessárias do viver.

Agradece o atleta pela chegada ao topo. Agradece o topo pela visão do que se supera. As quedas também agradecem. Cicatrizes vão compondo o mapa da nossa alma. Lágrimas aliviam delicadamente os impulsos do sentir. Os olhos agradecem às pálpebras como as palpitações agradecem ao sono. Pausas são necessárias na vida e nas partituras. Agradece o músico pela elevação que proporciona a sua profissão. O mesmo faz o artista que diz textos e que abre portas.

Portas serão abertas no ano que está pronto para chegar. Agradecem os que enxergam com os olhos ou com a alma. Onde há mar ou montanha, onde há barulho de bichos ou de gente, onde há frio ou calor, é bom agradecer. O luar presencia todos esses movimentos. Tão diferentes e tão iguais. Histórias se repetem e se renovam. Sempre há, entretanto, novidade.

Ainda no meio dos festejos de mais um ano, uma criança estará nascendo. Uma porção de crianças. Totalmente diferentes. Com uma possibilidade comum, viver, agradecer. E, no mundo animal, há mães se mexendo para abrir o mundo aos seus filhotes. E flores desmaiando seu romantismo para que o dom de surpreender também mereça agradecimento.

Olhe, ali na esquina, 2018 está chegando. Agradeça por estar vivo e por poder começar tudo de novo.

Por: Gabriel Chalita (fontes: Diário de S. Paulo e O Dia – RJ) | Data: 31/12/2017