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4 faces do amor

Esse é o título de um musical que está em cartaz, em São Paulo, no Teatro Nair Belo. O autor é um jovem dramaturgo, talentoso escritor, Eduardo Bakr. A trama se passa em histórias cruzadas de dois homens e duas mulheres. Os nomes já surpreendem e apresentam uma semântica própria para estabelecer que, o que ocorre, ocorre entre as mais diversas relações de amor. Os atores, Amanda Acosta, André Dias, Jarbas Homem de Mello e Sabrina Korgut estão impecáveis. A direção de Tadeu Aguiar é muito cuidadosa para um texto e uma encenação tão cheios de pequenos “não-ditos”. A música de Ivan Lins se encaixa muito bem com a trama. Enfim, está feita a sugestão: o espetáculo é imperdível.

Quero, agora, me aprofundar no texto de Eduardo Bakr. Já li outros textos dele. Já li alguns de seus livros infantis. Eduardo é um talento. A temática do amor é necessária; porém, sempre perigosa. Amar, aliás, exige coragem. Falar de amor, também.

O amor tem uma face? Qual seria a face do amor?

No alto do prédio, alguém pensa em desistir da vida. Ou não. No alto do prédio, alguém lá está por alguma intuição de conhecer um amor. Desistir da vida pela ausência de amor? Não, a personagem não queria cair, queria flutuar. Mas esses descuidos podem ser fatais. Não quando surge um amor. Será?

Passado o susto do primeiro encontro, a surpresa das diferenças, nasce a rotina. Os dizeres que ora aquecem, ora esfriam, uma história de amor. A ausência de cuidado é sempre um perigo. Mas o amor tem 4 faces?

Os gregos usavam o número 4 para falar de completude. Os primeiros filósofos das províncias jonicas da Grécia ousaram sua explicação para o princípio de tudo a partir de 4 elementos: terra, água, ar e fogo. Aristóteles falava em uma vida correta, tetragonalmente correta, isto é, correta em todos os lados, perfeita, portanto.

O amor é perfeito? Refaço a pergunta. O amor real é perfeito? Ou apenas o ideal? Ou a perfeição estaria apenas no Amor Maior? Os amantes, certamente, não são perfeitos. E isso fica claro no texto de Eduardo Bakr e na vida. São as imperfeições que nos arregimentam para vivermos juntos. E por que, então, temos medo de falar em complementariedade? O final da peça é feliz. Justificadamente feliz. Como as lindas histórias de príncipes e princesas que nos acalmavam nos nossos inícios. Éramos pequenos quando ouvíamos essas histórias, sofríamos nas tramas que uniam o início explicativo ao final apoteótico. Sempre há algo de incômodo a invadir os nossos cômodos. Éramos pequenos. Em matéria de amor, seremos sempre pequenos. E, paradoxalmente, grandes. Magias do amor. Elevamo-nos como a personagem que queria flutuar. Elevamo-nos ao pensarmos no outro. E nos apequenamos com pequenezas que não deveriam existir.

Nas 4 faces do amor, há um momento em que parece que as despedidas são necessárias. Até são. Há muitas partidas nas nossas travessias. Mas o autor é generoso e o espectador sai com vontade de amar. Com esperança de, enfim, ver o sonho do amor alcançado.

Amanda Acosta, André Dias,Jarbas Homem de Mello e Sabrina Korgut em

4 FACES DO AMOR, o musical
De Eduardo Bakr
Músicas de Ivan Lins
Direção musical de Liliane Secco
Direção de Tadeu Aguiar
Sexta a domingo no Teatro Nair Bello

Sobre a hipocrisia e outras maldades

Tenho desprezo pela hipocrisia. Prefiro os que, olhos nos olhos, abrem as comportas dos sentimentos e revelam apoio ou reprovação aos que se vestem de afáveis e espalham maldades.

Piores ainda são aqueles que, nas doces palavras, tentam convencer o interlocutor de que só dizem o que dizem por amizade. Por preocupação.

Dia desses, um amigo revelou sua decepção com um outro amigo. Contou-me ele que esse falso amigo falou para uma, duas, três, quatro ou mais pessoas sobre um erro que ele achava que o amigo havia cometido. “Oras, por que não disse diretamente a mim?” -bradou, desconfiado do amigo.

Concordei com ele. Amigos falam aos amigos. Amigos não espalham o que nem sabem. Os hipócritas fazem isso. Jesus não tolerava os hipócritas. E há tantos hipócritas que usam o nome de Jesus. E ganham notoriedade, inclusive, por isso. Mas continuo convicto de que essas pessoas não são felizes. Nunca conheci um atirador de pedras feliz. São atormentados que fingem boas maneiras. Ou, nas palavras de Jesus, são sepulcros caiados, raça de víboras, hipócritas. Jesus não se irritou com os pecadores. Pelo contrário. Veio amenizar suas dores. Irritou-se com os religiosos que, embora tivessem o título, nada entendiam da verdade, da religião.

Há outras maldades que também perturbam a vida. Nas esferas das amizades, vale lembrar a ingratidão. O que se faz a um amigo se faz por convicção, não por esperar reconhecimento. Mas, certamente, na ciranda dos afetos, é preciso que se aprenda a agradecer. E a se lembrar do que foi feito. Gratidão é um sentimento que não prescreve.

Àqueles que já viveram essas decepções uma singela sugestão: prossigam acreditando nas amizades. Há hipócritas por toda a parte, mas há os generosos, os verdadeiros, os amantes das pessoas e dos instantes. Aqueles que não desperdiçam esses instantes para destruir pessoa nenhuma quanto mais um amigo.

O futuro do meu filho

Em uma universidade, pai e filho sentam juntos na mesma sala. Resolveram cursar engenharia. Já estão no terceiro ano. O pai sempre foi ausente. A bebida roubou-lhe o convívio. As agressões eram constantes. Um dia, a mãe partiu e levou os filhos. O pai não se importou. Melhor assim. Já não gostava daquela mulher que se tornara resmunguenta, na sua opinião. Virou uma espécie de acusadora.

Queria que ele escolhesse entre ela e a bebida. Isso o importunava. Não se exigem escolhas alheias. Isso os afastava. Os tempos de desejo eram passado. Vez ou outra, ele agia com alguma violência para demarcar território. Que história é essa de mulher dizer a ele o que deveria ou não ser feito? Deu de ombros à partida da mulher. Não haveria de encontrar outro homem e voltaria, decidiu ele.

O tempo passava e ela não voltava. A solidão o incomodava tanto ou mais que a presença daquela incômoda. Tentou a reaproximação. Não teve sucesso. Acusou-a de ingrata. Vomitou xingamentos de toda ordem. Deve haver algum homem. Mulheres não são fiéis. Fingem companheirismo, mas ao primeiro espaço preenchem sem se importar com o que viveram. E foi dizendo. As palavras eram desconexas. Acusações e humilhações. Ela resistiu. Sabia que os filhos adolescentes ouviam. Havia trabalhado o dia todo. Estava cansada. Mas resistiu. Na sala, só a voz dele se ouvia.

Foi quando o menino saiu do quarto. Olhou para o pai e pediu que ele fosse embora. Que ele roubava a paz. As duas filhas eram menores e tinham medo. Ele deu um tapa no rosto do filho e partiu. O tempo passou. O filho cresceu um pouco. E se encontraram novamente. Em um bar. O pai estava bebendo quando o viu numa briga. O filho havia bebido também. Sangue jorrava de uma fresta aberta pouco acima do olho. O filho estava tonto. Ele tirou os curiosos e abraçou o filho. O filho parecia não reconhecê-lo.

Foram juntos ao hospital. Ninguém acreditaria que o pai, naquele estado, pudesse cuidar do filho. Alguns pontos, alguma costura, alguns cuidados e o menino podia voltar para casa. O pai o levou. Falaram pouco. A mãe não estava. Estava trabalhando. O filho dormiu. O pai olhou para ele e jurou que mudaria de vida. “O futuro do meu filho depende de mim”, entendeu ele. Adormeceram juntos. Chegou a mãe e não entendeu. O pai chorou. Chorou muito. O filho acordou assustado. Falaram tudo o que pouparam nos anos de pouca convivência. O menino já era homem. Escolheu uma vida errática. O pai pediu que convivessem novamente.

E aconteceu o que eu presenciei. Pai e filho em uma sala em uma universidade. Deixaram a bebida. O menino, depois de alguma dificuldade, deixou as drogas. E o futuro apareceu. O relato foi emocionante. O pai voltou para casa. A mulher demorou a aceitá-lo, demorou a acreditar em recomeços. Ainda o amava, mas temia as recaídas. Nunca houve recaída. A visão do filho caído, sangrando. A visão de um futuro sem futuro. A visão de sua ausência perigosa fez dele um pai. Disse o filho que o pai é muito estudioso. Disse o pai que o filho é mais rápido do que ele para aprender. Disse o filho que o pai virou um homem muito romântico. Disse o pai que o filho é bonito como a mãe. E foram os dois falando sobre os dois.

E eu fiquei imaginando a força dos laços humanos. As reconstruções que são possíveis quando há amor. As duas irmãs pretendem cursar a faculdade no próximo ano. São gêmeas. O pai ainda me disse que não teve pai. Que o perdeu quando tinha 5 anos. A mãe cuidou dele sozinha. Entre trabalhos e problemas. Disseram que me convidariam para a formatura. E pediram que eu autografasse um livro para a mãe, para a mulher. “Escreva, por favor!”, pediu ele, “Para a mulher mais linda do mundo” O filho sorriu. Feliz por viver outro tempo com um outro pai. Eu escrevi. E escrevo em homenagem aos que caíram e que conseguiram se levantar para cuidar de alguém.

Nossa Senhora de Fátima

13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. Reflitamos sobre os valores que se extraem das aparições em Fátima. Escolheu Maria pastores. Pastores são aqueles que cuidam de animais. Que pastoreiam. Que têm o poder de fazer com que os animais conheçam suas vozes e os sigam. Mas Maria não escolheu pastores adultos, experientes. Escolheu três crianças: Lucia, Jacinta e Francisco. Os adultos duvidaram, os donos da verdade afirmavam que a verdade é que esses fatos nunca ocorreram. As crianças foram em frente. Queriam ouvir a voz daquela Senhora. Saber dos seus ensinamentos. Viver a experiência única de amar a mãe do Amor. Maria, a mãe de Jesus, é uma só. Com títulos diversos. Nossa Senhora de Fátima é a mesma que Nossa Senhora Aparecida ou que Nossa Senhora de Lourdes e assim por diante. É a mesma que Nossa Senhora das Dores ou da Piedade ou da Paz. Quanta paz têm aqueles campos de Fátima em Portugal. Quanta paz tiveram aquelas crianças ao serem portadoras da mensagem da Mãe.

Os donos da verdade, de nossos dias, são descrentes desses fatos. Ou, então, não gastam tempo para falar desses mistérios. Preferem o enlouquecimento de uma busca desenfreada pelo ter e pelo poder. Ousam pisar ou pesar sobre os outros para subir. Não sobem. Descem. Não compreendem os valores essenciais para uma vida com significados.

Mas há os que, crentes na bondade do mundo e dos homens, seguem a luz que encantou a todos na última aparição em que o sol se fez gigante. São peregrinos do bem, buscam a vivência do amor, ensinamento maior de seu filho, Jesus. São os que compreenderam o mistério de Fátima: fazer com que a paz vença os ódios e as perseguições. A humanidade seria mais bonita se os valores dos pastores e das crianças, do cuidar e do ser simples, prevalecessem. Ouvir a voz do pastor e olhar para o alto para compreender onde moram os sinais. E para o alto dedicar a vida.

13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. Vale a pena pensar, rezar, fazer.

Canção para minha mãe

Um compositor, em algum lugar, em algum tempo, filho de alguma mãe, recebe a incumbência de compor uma canção. Preocupado com o tema, “Canção para minha mãe”, relê a sua alma. E o faz com vagar. Fecha os olhos e vai até o tempo das delicadas carícias. Das notícias boas ou ruins. Do alimento que fora gerado para nele gerar forças. Não quer cair na pieguice. Tem preocupações com os críticos. Não quer ser racional ao extremo. Tem preocupação com os que amam. Entretanto, é preciso compor. E o compositor sabe que, ao escolher palavras, outras serão descartadas, o mesmo se dá com o estilo, com o ritmo, com a vida.

Ler ou reler a alma não é um exercício que se esgota em tempo limitado. As letras ali gravadas são caprichosas. Só se deixam ler quando há clima para tal.

É outono. O frio já avisa da mudança da estação. Mas o sol, teimoso, fica. Mais leve que no verão. Mas fica. O compositor, que recebeu a inusitada encomenda, caminha de um lado a outro. Olha para o longe e ensaia algum sorriso. Foram dias lindos. É isso o que está escrito na alma. A lembrança da volta da escola e a visão da mãe que o esperava na porta da casa. E o sorriso festivo como se o visse pela primeira vez. E o abraço. E o prazer em alimentá-lo com todas as refeições possíveis. Ou impossíveis. Lembranças de algumas viagens. De alguns ditos. De dias de inverno em que a coberta era tão essencial quanto as histórias contadas para o sono chegar, sem solavancos. Em dias quentes, até água do esguicho trazia o sabor da infância.

Tiveram cachorros. Choraram com as suas partidas. Partiram de casa mais de uma vez. Fecharam a porta com alguma melancolia, mas olhavam para frente, pois estavam juntos. Compraram carros, roupas, objetos. Não se lembra muito bem o compositor desses detalhes. Lembra-se, entretanto, de outros. De medos que foram vencidos com a simples chegada da mãe. Foi assim em um coral em uma formatura, foi assim em um dia de dizer poemas, foi assim em uma sala de hospital antes de uma cirurgia.

Não sabe o compositor se o enredo deve ser triste ou feliz. Encontra nas letras gravadas na alma argumentos para ambas as escolhas. O dia em que sua mãe se foi não foi um dia feliz. Lembra-se dele. Das despedidas. Dos dias de doença. Morreu ela em uma primavera. A morte é a primavera da alma, acredita ele. A mãe o vê enquanto ele compõe. Ou enquanto pensa na composição. Olha algum retrato. Em algum canto. Seu canto precisa expressar o que sente. Acredita nisso. Na autenticidade do que deixa. Do que sabe ser capaz de interferir na vida das pessoas.

Canta algo para si mesmo. A letra o vem escolhendo. Sai de sua alma e vai ao seu encontro. Chora algum choro. Gostaria que a mãe estivesse ali. Pensa se disse tudo o que deveria ter dito antes dela partir. Lembra-se do que faltou. Faltou ela permanecer por mais tempo, certamente. Não tem filhos ainda. Seus filhos são suas canções. Há um prestes a nascer. Pensa no seu nascimento. Na coragem de sua mãe em ser mãe. O leite do amor ainda o nutre. O seio já se foi, mas a lembrança não.

Senta-se, conversa com os papéis e põe-se a escrever. As palavras vão escolhendo onde querem ficar. É uma homenagem. Crianças haverão de cantar. E também os adultos. Ao lado da letra, as cifras. O ânimo é o do amor.

Viveu uma vida intensa, encontrou pessoas e, por elas, foi encontrado, mas o amor que primeiro o embalou jamais foi esquecido. O colo leve dos restabelecimentos. As mãos, antes jovens depois envelhecidas, que separavam algo em seu cabelo. Os beijos tantos que desejavam bons-dias. O último, antes da despedida, quando a palavra saiu de uma alma a outra, a boca já não tinha como dizer.

Termina o trabalho.
A canção não é triste. Definitivamente, não é triste.
Ao final, escreve uma dedicatória:

“Mãe, na partitura da minha vida, a letra mais iluminada é a sua.
Canto a canção da saudade e da gratidão. A canção do amor. O amor que permitiu que eu nele acreditasse. Ele, o amor, vestiu-se de mulher e gerou em mim o que há de mais lindo. O que fica.
Entre poeiras e desnecessidades, entre estranhas relações que já conseguiram me adoecer, o seu amor, mãe, é o que fica. O cordão umbilical foi cortado, apenas ele”

Uma enxada, a gratidão de Kauany

Era uma formatura na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte. Há uma tradição dos formandos descerem uma escada. Festa esperada. Celebração merecida. Roupas bonitas. Kauany Sousa quis homenagear os pais, agricultores simples. Desceu as escadas com uma enxada nas mãos. Os pais foram ao seu encontro e choraram juntos. Nison e Creuza moram na Zona Rural e têm outros três filhos. Kauany é a primeira a se formar. Emocionada, ela disse: “Foi uma forma de demonstrar meu carinho, meu amor, minha gratidão por tudo que eles fizeram por mim. Mesmo eu tendo nascido em uma casa de taipa, sem energia, sem nada, eles sempre me deram o cuidado, o carinho, a atenção”.

Há algo nobre na homenagem e nos dizeres. O reconhecimento. O respeito às origens. É bonito ver a simplicidade e a correção de valores dos pais. Se faltou muita coisa, não faltou o essencial. Souberam educar. Sabem educar. Da terra, buscaram o sustento. Na terra, aprenderam a tirar as ervas daninhas para ver a plantação crescendo bonita. Bonita é a visão de Kauany. Tem ela o sonho de cuidar dos pais, de retribuir o que eles fizeram, de continuar a estudar e a acreditar que todo mundo pode construir a própria história.

Tenho conhecido histórias semelhantes. Filhos que conseguem o que os pais não conseguiram. Era difícil, há até não muito tempo, filhos de famílias sem condições financeiras chegarem à faculdade. Hoje, é mais comum. E isso é muito bom. Já me emocionei em muitas formaturas, nas quais tive a honra de ser homenageado, ao ver os depoimentos que confessavam: “Na minha família, sou o primeiro a ter um diploma”. Há muitos, entretanto, que partem de casa e tentam esquecer as origens. O que é triste. E há os que, como Kauany, levantam a enxada com orgulho do que viveram, do lar onde nasceram, dos afetos que nutriram esperanças e que os trouxeram até ali. Precisamos de mais histórias de gente correta que nos inspirem a prosseguir. Parabéns, Kauany!

Entre jovens

Fui dar uma palestra para jovens universitários. Entre tantas. Entre tantos jovens, reanimei minhas esperanças. Não que seja adepto do pessimismo, do derrotismo, das mágoas acumuladas por decepções com a conduta humana. Mas, vez ou outra, há cansaço. Há tantos desacertos que algumas manhãs parecem padecer de força suficiente para alimentar o dia que virá.

Era uma manhã. O tema da palestra, “A ética na construção do conhecimento”. Logo na chegada, os olhares já apontavam para bons momentos. Jovens apinhados em todos os cantos. Nas cadeiras, no chão, nos espaços próximos ao palco. Tão próximos estavam eles naquela manhã. Agradeci a receptividade e comecei a prosa. Amparei-me em alguns pensadores, filósofos que se debruçaram sobre o tema. Fizemos uma viagem a tempos e espaços diferentes. Há inquietações que fizeram com que produzissem belas teorias sobre o conviver humano, sobre a conduta necessária para a conquista da harmonia.

Chegamos aos tempos de hoje. A amplitude da temática não se esgota em algumas horas. A ética é pauta para qualquer assunto da conduta humana. A ética é alicerce para construções sólidas. É inspiração e é hábito. É o caminho para o bem comum. Na política, nas relações empresariais, nas religiões, nas profissões, no professar crenças de tempos de respeito e encantamento. Ou se é encantado pelo estar no mundo ou dificilmente se buscará compreender as diferenças e a beleza em suas relações. É por isso que o belo e o bom são convivas de um mesmo banquete.

Na atenção e nos olhares dos jovens, nascia a minha oração de gratidão. Era bom estar ali. Era bom saber-me educador. Ofício da generosidade. O professor dá um pouco de si e um pouco do que sabe a cada encontro com os seus aprendizes. Dá e nada lhe falta. Dá e a ele se acrescem novos horizontes.

Lembrei-me do Papa João Paulo II quando, no encontro com os jovens na capital mineira, usou o nome da cidade para expressar o seu contentamento com a multidão que ali estava: “que Belo Horizonte”. Que belo horizonte era aquela visão. Jovens. Sequiosos de vida. De futuro. Alistados no batalhão da esperança.

Terminei a palestra e vieram as perguntas. Profundas. Complexas. Sinceras. E as respostas que geravam outras perguntas. E o tempo foi insuficiente. E prosseguimos desobedientes. Era bom estar ali. Era bom beber nas águas ainda puras de tantas promessas de amanhãs.

Acabado o encontro, encontramos tempo para conversar durante a travessia até os portões da universidade. O diretor dizia que era preciso me liberar, que eu tinha uma agenda repleta. Repleto estava eu pela curiosidade daqueles moços. Linda a “Oração aos moços” de Rui Barbosa. Atravessamos juntos aqueles pátios entreolhando as nossas histórias com o desejo de melhorar as coisas, com o ânimo de animar o país, com a responsabilidade de quem sabe que a ética é coletiva e individual. É decisão de um grupo e de um indivíduo. Não quero entrar na distinção entre moral e ética. Quero apenas aplaudir os jovens. E agradecer.

Não tenho a ingenuidade de julgar que está tudo bem. Não. Definitivamente, vivemos uma crise aguda. Política. Comportamental. De valores. Mas, em outros tempos e em outros espaços, a humanidade já enfrentou esses amargores. E, docemente, prosseguiu. Flores brotaram em áridos caminhos, águas nasceram em regiões desérticas, pássaros rasgaram céus desabitados. Jovens compuseram canções, quando o silêncio forçado nos forçava a viver a ditadura.

Liberdade era o vento que soprava quando nos despedimos naquela manhã.

Ainda hoje vivo o restante daquele dia.

Sobre traição

Os recentes acontecimentos políticos colocaram na ordem do dia a palavra “traição”. Há sempre um sentimento de repulsa em relação ao traidor. Exemplos clássicos na história são as traições de Jesus por Judas, de Tiradentes por Joaquim Silvério dos Reis e do Imperador César por Brutus. As palavras “traição” e “tradição” vêm do latim traditio, derivado de tradere, que significa entregar, passar adiante. Tradição é, assim, passar adiante costumes importantes, valores, hábitos que constituem um grupo. Traição também é passar algo adiante. Mas algo que prejudica alguém, algo que destrói o outro. Informações que podem fazer com que um país perca uma guerra. Daí o rigorismo contra os traidores na vida militar.

Há traição nas relações amorosas. Um homem jura a uma mulher ser-lhe fiel e a trai. Age nos esconderijos para que ela não descubra. Não quer ser desmascarado. Há traição na vida empresarial. Imaginem uma empresa que vai lançar um produto e alguém aceita benefícios de um concorrente para contar as estratégias desse lançamento. Há traição nas amizades. Um segredo que deveria ser respeitado, nascido numa conversa de confiança entre pessoas. O pretenso amigo passa adiante o segredo. Trai o outro por razões de ordem diversa.

E na política? Certamente a política é um cenário propício a traições. A tradição da política, no sentido correto, deveria ser a preservação do bem comum, a verdade do cuidar coletivo que passa de geração a geração. O estudo dos inspiradores do passado, na teoria e na prática. Ao que se assiste, infelizmente, não é isso. Trai-se por vantagens. Trai-se por dinheiro. Trai-se por poder. Quem um dia senta-se à mesa como aliado, no outro fareja o sabor de poder que a outra mesa pode oferecer. E se esquece do jantar de ontem. E se alia ao outro exército sem o menor constrangimento. Trair o povo vem se tornando regra e não exceção. Tristes tempos em que as justificativas nada justificam. Em que amizades e alianças nada valem. Em que a verdade é um detalhe.

O tempo e o tempo

Estava sentando em um parque, lendo, aguardando uma amiga. Uma criança veio correndo em direção à mãe, chorando. Mostrou-lhe o dedo. Ferido por um espinho, talvez. Foi pegar alguma coisa e pegou o espinho. Sangrava o dedo do menino. A mãe o abraçou. Pegou um guardanapo de papel e limpou o sangue. Doeu. O menino reclamou. O sangue ainda jorrava. Vagarosamente, mais jorrava. Não houve corte profundo. O dedo não correria riscos. Mas o menino chorava. E a mãe o acolhia. Estancado o sangue e o choro, a mãe disse que era melhor fazer um pequeno curativo. E que logo ficaria bom.

“Logo, quando?” – perguntou o menino.
“Logo mais” – disse a mãe.
“Logo mais que horas?”.
“Calma filho, não foi nada”.

A criança parecia impaciente. Queria saber o tempo da cicatrização. Queria brincar. Queria ficar livre dos troços que a mãe colocara no dedo para evitar que o sangue voltasse a escorrer.

“Se eu ficar bonzinho, melhora mais rápido?”.

A pergunta parecia ser uma promessa, uma disposição para antecipar as coisas. A mãe respondeu sorrindo:

“Você é bonzinho, mas, para fazer uma pele nova no seu dedo, é preciso um tempo, meu filho, não há como acelerar isso”.
“E por quê?”
“Por quê? Como por quê?”
“Quem é que inventou que precisa de um tempo para melhorar meu dedo”?

A mãe viajou com o pensamento. Pude ver nitidamente isso no seu sorriso sem maquiagem. Ficou pensando. Sorriu novamente. E abraçou o filho que ainda aguardava uma resposta.

Como seria bom se dominássemos o tempo. O tempo nos ensina que é o tempo que domina o que quer. Machucados no dedo ou cicatrização na alma. Quedas na rua ou ruas de solidão construídas por escolhas erradas.

Há um tempo, o qual chamamos tempo da inocência, que é difícil entender o tempo. Mas, depois, vem um outro tempo. E, confesso, continua difícil. Dizem que os orientais entendem o tempo melhor do que os ocidentais. Não tenho tanta certeza, mas acredito que sim. Pelos livros que li. Pelas teorias construídas por seus filósofos. Pelos filmes que tem uma outra relação tempo e movimento.

Era um dia de sol aquele no parque. Ao longe, vi minha amiga caminhando lentamente. Ela tem muito tempo de vida. E o aprendizado que é melhor tomar cuidado, porque o tempo da cicatrização de alguma quebradura, de alguma queda, pode lhe roubar bons momentos de prazer. Como o de encontrar um amigo no parque e conversar sobre o tempo.

Contei a ela o diálogo entre a mãe e o filho. E ela me respondeu: “Alimento-me desses cotidianos, gosto das gentes”. E prosseguiu: “Gasto tanto tempo com essas incursões que não me sobra tempo para envelhecer”.

Fiz a ela a pergunta da criança: “Quem inventou o tempo do ferir e o tempo da cicatrização?”.Ela pediu que eu lhe desse um tempo para responder. Vivia ela o tempo das aprendizagens. Naquela idade.

Foi quando vimos a mãe e o filho indo embora. De mãos dadas. Ela olhando para a frente e sorrindo. Estava, decididamente, feliz. Ele resmungando alguma coisa com o seu dedo. Desejei dar um abraço nos dois. Olhei para minha amiga e prossegui ouvindo suas histórias. Prepara ela um novo livro. Sobre o tempo.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 24/04/2016

Loucura ou sonho?

Nesta semana, comemoramos o aniversário de Monteiro Lobato. Foi ele uma escola de construções de narrativas e personagens. Um louco na arte de desbravar. Seu jeito de fazer do livro um companheiro essencial uniu o talento de escritor e a ousadia do empreendedor. É dele a frase: “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum”.

Nesta semana, também, lembramo-nos dos inconfidentes. Foram eles sonhadores ou loucos? Sem uma dose de loucura teriam ficado em casa sem os riscos das mudanças de temperatura – e como elas mudam! Sonhadores? Definitivamente, sim. Sonharam com a liberdade sem nem saber muito bem como era.

Não foi assim com o povo escravo do Egito que ousou seguir uma voz e que, ao se deparar com o fim da escravidão, chegou a dela ter saudade? O sonho teria se convertido em pesadelo? Noites difíceis viveram também os inconfidentes. Certamente. Na solidão e na presença de pensamentos duais. Fizemos o correto? Vale a pena perder a vida pela causa da liberdade? Quando vejo discursos vazios de muitos políticos brasileiros, ausências de sinceridade, dissimulações, fico sonhando com outros tempos.

Precisamos de loucos e sonhadores. De cavalheiro como o criado por Cervantes. De jovens que habitavam os “Miseráveis”, de Victor Hugo. De outros Lobatos. Também esse sofreu as consequências da ousadia, da sinceridade, da coragem.

Os dissimulados estão ganhando terreno. Infelizmente. E aplausos. O que deveria ser vergonha torna-se esperteza. Os homens que fizeram a diferença não foram os espertos. Não. Esses atrapalharam. Ganharam um dinheirinho a mais por entregarem o mestre. O que o mundo, hoje, diz de Judas e o que diz de Jesus? Lobato, o inspirador, optou pelas crianças quando viu como era difícil consertar os adultos: “A mim me salvaram as crianças. De tanto escrever para elas, simplifiquei-me”.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 22/04/2016