Tag: chalita

Amor ou temor?

É essa uma pergunta famosa na filosofia.

Maquiavel, um dos fundadores da ciência política moderna, queria saber se, para se manter no poder, era melhor ser amado ou temido. O poder, ao qual se refere o filósofo florentino, parece ser o poder do príncipe ou de quem governa. Mas o poder é exercido em todas as relações sociais.

No poder familiar, é melhor aos pais serem amados ou temidos?

No poder que tem um professor, em uma sala de aula, é melhor que seja ele amado ou temido? No poder que um líder exerce sobre os seus liderados? Um diretor de uma empresa, por exemplo, é melhor que seja amado ou temido?

Vamos voltar a Maquiavel e ao seu tempo. Explicava ele que era bom que fosse amado e temido, mas que, se precisasse escolher, era o temor mais fácil de se controlar do que o amor.

Um pai que é temido por seu filho faz com que o seu filho lhe obedeça com mais facilidade. Um professor que impõe medo aos seus alunos consegue exercer o seu poder com mais tranquilidade. Mas o que quer um pai? O que quer um professor? O temor é o objetivo que os impulsiona a agir ou é o amor?

O amor é mais trabalhoso, é mais inconstante, é mais dialogal. O amor exige mais explicações, mais compreensões, mais atitudes. O temor paralisa e pronto. Está resolvido. Não coloco a mão naquela grade porque dá choque. E não há nada que eu possa fazer para sair. O amor faz com que eu não saia, porque escolhi ficar. É aqui, onde estou, o meu lugar.

Nas relações de amor, não pode ser o temor a dar o tom. Imagine uma mulher que nada faz com medo de seu marido. Ou o contrário. O marido obedece com medo das reações imprevisíveis da mulher. O que se faz a quem se ama se faz com delicadeza, se faz com liberdade, se faz em decorrência de um sopro especial. Nada de barulhos ou de ameaças. Mas de sussurros. De dizeres nobres, de silêncios que também dizem.

Que prazer tem um professor quando percebe que todos os alunos estão em sala de aula, não por terem medo de repetir por falta, mas por acreditarem que aquele é o lugar em que devem estar. Que aquela aula muda a vida deles. Que os conhecimentos os encorajam a viver desbravando o universo.

Um líder, quando é amado, terá mais trabalho para convencer os seus liderados do que um líder que é temido. Se o líder tem armas amedrontadoras à sua disposição, se impõe regras duríssimas, se determina punições severas, será facilmente obedecido. Mas é esse o papel do líder? Liderar é algo muito mais profundo. É ter uma autoridade significativa. Autoridade vem de “autor”. O líder é aquele que faz com que todos se sintam tão autores quanto ele do sonho coletivo de melhorar o mundo. E, para isso, é mais belo que suas palavras e ideias sejam amadas e não temidas.

Nunca temi o meu pai. Sua voz branda. Seu passo suave. Seu olhar profundo. Eram de amor. Hoje, o que me habita é a saudade de um tempo e de um espaço único que era viver com ele. E, quando me lembro dele, certifico-me ainda mais de que o tempo nos ensina que é o amor e não o temor que permanece. O que mais faz viver o que ele ensinou, certamente, não é o medo, mas a admiração que um líder simples semeou em mim.

A colheita é o sonho daqueles que semeiam. Mesmo que demore. Mesmo que tudo pareça inverno.

Perdoe-me, Maquiavel, fico com o amor.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 22/04/2018

O Silêncio

Dia desses, fui a um café com uma amiga. Sentamos numa mesa e, ao lado, duas senhoras conversavam. Falavam sem a menor preocupação em compartilhar a história com todas as mesas ao redor. Minha amiga olhou-me com estranhamento e, em um tom comedido, disse: “Por que falam tão alto?”. E as gargalhadas também eram sem economias. E chamavam o garçom com um grito de “Oi”. Alto.

As pessoas das outras mesas paravam de falar e olhavam para tentar compreender. Uma criança berrava reclamando de alguma coisa em uma mesa não tão distante. Os pais, entretidos com seus celulares, pareciam não se incomodar. Eu olhava um pouco indignado. Desperdício. Por que não contavam histórias aqueles pais? Por que não mediam o crescer cotidiano dos filhos? Não. Estavam em outro mundo.

A música não estava tão baixa. E, de repente, uma das senhoras das palavras altas gesticulou além do normal e derrubou a bandeja do garçom que vinha trazendo algumas xícaras de café, pães, sucos e água. O barulho roubou novamente a atenção dos que ali estavam.

Meus pensamentos buscavam por liberdade. Minha amiga, geralmente vagarosa para comer, deu-se rapidamente por satisfeita. Ir embora era um convite que nos parecia irrecusável. Pagamos a conta e saímos.

Era um domingo. O sol aquecia o chão entre árvores centenárias naquela rua. Fomos andando e deixando para trás o barulho. Comentamos alguma coisa, brevemente, sobre a história que aquelas duas contavam. Não havia como não ouvir. E, depois disso, o silêncio.

Ficamos andando por algum tempo observando o lindo dia. Em silêncio. Aos domingos, a cidade tem menos carros nas ruas. Não havia buzina. Não havia gritos nem ditos em tom incorreto. Havia o silêncio. Interrompemos um pouco para comentar um som mavioso de um pássaro que não conseguimos identificar. E, novamente, o silêncio. Depois de algum tempo, sem determinarmos o quanto, voltamos às conversas. Conversar é bom.

Cheguei em casa remexendo nas minhas impressões para compreender a beleza do silêncio. O barulho havia sido tanto que, sem percebermos ou combinarmos, ficamos em silêncio.

Pensei nos outros barulhos. Nas palavras ditas em momentos incorretos. Nas opiniões cheias de barulho. Nos gritos arrogantes de superioridade. Nas ameaças. Nos ódios espalhados. Nas vinganças. Tudo muito pouco silencioso.

Voltei-me para minha infância no interior. No acordar preguiçoso com o barulho dos bichos. No som das cachoeiras. No pensar sem pressa. Lembrei-me de um almoço na casa de uma amiga escritora. Quando terminamos, sentados em velhas poltronas, ela, de olhos fechados, convidou-me a ouvir o barulho de chuva. Repetiu quase que em êxtase: “Barulho de chuva”. Fiquei à época imaginando a sua imaginação. Quantas lembranças habitavam a velha escritora em dias de chuva.

Mas era um domingo ensolarado quando, depois de tudo, sentei-me para ler, silenciosamente, um romance. Quando percebi, em silêncio, o sol se despedia. Era um espetáculo digno de aplausos. Ah, aí está um barulho que nos faz bem!

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 15/04/2018

A riqueza de Carlos

Era uma terça-feira ou talvez uma quarta. Bem, o dia não importa. O que importa é o sentimento de Carlos.

Pois bem, ele amanheceu e olhou ao redor. E viu as coisas ocupando os seus espaços. A mulher já havia saído; seu perfume, não.

Enquanto inspirava o ar apaixonante, Carlos sorria. E agradecia por estar ali. No travesseiro ao lado, resquício de alguma maquiagem. E o cheiro bom da esposa. Carlos é um homem apaixonado. E fala da sua mulher com profunda admiração, o que é essencial para que um relacionamento rasgue o tempo.

Ao levantar, percebe uma fresta boa de sol iluminando a foto do filho. Tem eles um filho. Pequeno, ainda. Apressa-se para ir ao quarto do menino. Ele ainda dorme. Deita-se Carlos ao lado do filho. E o abraça com tanta força que força o menino a acordar. O filho não se importa. Diz um lindo “papai” que faz com que Carlos suspire de felicidade. Brincam eles um pouco. Cócegas, risos, guerra de travesseiros. E, depois, os afazeres necessários. O menino precisa ir para a escola, e Carlos para o trabalho.

Antes, tomam café juntos. O filho conta alguma coisa da professora. O pai saboreia um pão com manteiga e geleia. Doce é sua vida. Quando pensa que perfeição não existe, espanta o pensamento. Os dias têm sido substituídos por outros dias perfeitos. Numa sucessão de acontecimentos comuns, deliciosamente comuns.

Carlos tem amigos que reclamam dos relacionamentos. Espanta-se com alguns que dizem que o pior horário do dia é o da volta para casa. Faliram os afetos, adormeceu o respeito, esfriou o enlace. E permanecem semimortos desejando que o fim aconteça sem sobressaltos. Carlos não acha certo dar conselhos. O melhor é ouvir apenas. Vez ou outra, jogar alguma luz que ajude a enxergar. E que puxe alguma coragem para reinventar. Pensa consigo mesmo que jamais viveria uma história sem história. Se um dia esfriasse, seria sincero. Não, não haverá de esfriar. Ralha-se consigo mesmo por dar margem a especulações desnecessárias.

Ama a sua mulher e o seu filho. Ficar com eles é um deleite. Gosta de ouvir a voz de mulher. Vez ou outra, pega-se distraído, inebriado pelos sons que o agasalham. E ela ri. Ri de seus ditos amorosos. Carlos não economiza em palavras e gestos de amor. Economizar para quê? Trabalha ele com outros tantos que têm cada qual a sua história.

Dias desses, um dos sócios propôs um novo projeto. Inchou o peito para dizer sobre a ousadia da ideia e os resultados certos. Ficariam ricos, mais ricos. Carlos acenou concordando. O futuro exige empreendimentos desafiadores. E ganhar dinheiro é bom. Principalmente, quando se faz o que se gosta e quando se sente útil no que se faz. Mas sobre riqueza, sobre riqueza real, ele entende.

Necessidades? Poucas. O essencial, pensa ele, “encontrarei em casa hoje à noite”. O sócio olha para o olhar distante de Carlos. Fica feliz. Imagina ele que imaginando está Carlos com o projeto que farão. O cheiro da mulher e o sorriso do filho antecipam o prazer que não há de tardar.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 08/04/2018

Domingo de Páscoa

Páscoa vem de passagem.

Passagens interrompidas cheiram a escravidão. Páscoa é liberdade.

Passagens enterradas cheiram a morte. Páscoa é vida.

Foi assim nos idos de antigamente, quando um povo sonhava em sair de uma terra onde eram tratados com indignidades para experimentar, mesmo que no deserto, a sensação de irmandade. Os irmãos não se escravizam uns aos outros.

Foi assim, também, nos dias de Jesus. Pregaram na cruz o Pregador do Amor. O que houve? Não era Ele que curava os que de cura precisavam, que abraçava os que ninguém abraçava, que olhava com os olhos de amanhecer? Os paralíticos andavam, os leprosos sentiam-se acolhidos, os desesperançados amanheciam. Então, que mal fez Ele? Por que os gritos de “crucifica-o” abafaram as canções de liberdade? Escravos de opiniões alheias, afogados nos ódios dissipados por aqueles que tinham medo de perder algum poder, já não sabiam o que faziam.

E é assim, do alto da dor, que diz Jesus: “Pai, perdoa-os, eles não sabem o que fazem”. E não sabiam mesmo. E não sabemos nós quando optamos por tudo o que nos restringe a liberdade ou a vida.

Os tempos são outros, mas as algemas persistem a nos enganar. Desconhecemos a passagem necessária que nos leva à montanha sagrada, que nos permite ouvir o sermão da humildade. Lá, em uma relva suave, os sentimentos poderiam ser suavizados. O Galileu falava de amor e de humildade, de perseguições e de justiça, de engodo e de verdade. É a verdade que nos liberta. Mas o que é a verdade? Como encontrá-la? Talvez esteja ela naquele ferido que aguarda alguém que desça de onde estiver e que dele cuide. Foi assim que Ele explicou quando falou da vida que não se encerra, quando desenhou a face do próximo. O bom samaritano. O próximo é quem cuida de mim. O amor ao próximo é o que me revela a verdade mais sagrada, a tal liberdade.

Não há liberdade no ódio, não há liberdade na mentira, não há liberdade na injustiça. Mas estão todos eles por aí, o ódio, a mentira, a injustiça. Sim, está por aí como por aí estão a morte e a escravidão.

Mas hoje é Páscoa, é passagem, é mais uma vez um convite a deixar as algemas, as que querem nos colocar e as que queremos colocar nos outros, e partirmos para viver o chamado que Ele nos faz.

O Paraíso começa aqui, nos sorrisos que somos capazes de dar, nos abraços que consolam, nos olhares que nos retiram da multidão e que conferem o poder de unicidade.

O que Deus nos oferece vai além dos templos e das cerimônias, mas são eles importantes quando nos ajudam a compreender, nunca a odiar. Seria muito estranho acreditar em um Deus que representasse o ódio ou a vingança ou as matanças de reputação. Em nome de Deus, só pode falar quem tem voz de liberdade. Quem tem ouvidos capazes de ouvir o barulho das cachoeiras e dos animais, quem tem lágrimas que jorram emoções.

Em nome de Deus, só pode falar quem O experimenta. Experimentar Deus é mais humano que compreendê-lo. Depois de todos os acontecimentos daqueles tempos, depois dos ditos dos que viram que o túmulo estava vazio, que a vida havia vencido a morte; depois de reconhecerem aquele homem falando “Que a paz esteja convosco”, puderam eles, podemos nós, compreender- não há força mais poderosa que o Amor.

Era o amanhecer de mais um dia…

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 01/04/2018

Os mistérios dos desencontros

Helena nasceu um dia antes do aniversário de seu pai.

Bruno, pai de Helena, morreu um dia antes do nascimento da sua filha. Ele queria muito ter vivido um pouco mais. Não dependeu dele. O irmão, com os olhos marejados, apenas disse: “Não é justo!”.

A mãe de Helena, Paula, lindamente grávida, acariciava a vida que estava chegando, enquanto chorava a vida que estava partindo.

O sol arrebentava a rotina. Na casa da família, num interior deste país tão grande, os amigos iam chegando. É assim o despedir. Alguns ensaiam algumas tentativas mais ousadas de espantar a dor, brincado de entreter; outros, repetem antigas e respeitosas fórmulas, “Meus sentimentos”. Na televisão, passava um jogo de futebol. Um ou outro comentário. Bruno era corinthiano. E agora?

Sentimentos jorravam como cachoeiras naquela casa. Lembranças de outros tempos. O irmão falava da mãe de ambos, que partira prematura; na mesma idade que o irmão agora partia, 27 anos. “Cedo demais”. Também foi em um mês de março. O mês das águas que encerram o verão, dizia o poeta, cantava o cantador.

A dor estava ali naqueles olhares distantes, e eles tentando agarrar o que era possível para prosseguirem. Era preciso prosseguir. Helena ainda estava chegando. A semente de Bruno fora plantada. E o milagre do nascimento inauguraria novos tempos. E a alegria da criança haveria de semear outros marços, maios, novembros e assim por diante. Mas por que o câncer foi mais forte que o desejo de ver a filha nascer? Mas por que existe o câncer? Ou a morte? Ou a separação? Por que não sabemos o que há depois? Será que o Bruno está vendo a filha nascer? Será que está sorrindo? Será que conseguirá protegê-la, agora que vive mais perto da Luz? Será que a mãe de Arthur e de Bruno conseguiu fazer o mesmo? Será que a mãe de Bruno foi ao seu encontro para recebê-lo em sua nova condição? Estão juntos? Arthur prossegue. Na arte de e ncontrar o passo certo. Os que amou desde cedo já foram. Mas ainda é cedo para desistir do amor. Entre lágrimas e decisões, as expressões de amanhãs permanecem. Sim, é vida que segue.

Amigos se aquinhoavam buscando explicações. Mistérios não podem ser explicados. Há tentativas, há inspirações, há ditos que consolam, que religam. Mas a dor é a dor, e a sua pujança desafia explicações. A dor daquela família desafiava o sol daquele dia. Em força. Em intensidade. Isso no dia da despedida de Bruno.

Dois dias depois, no nascimento de Helena, havia uma brisa e os sorrisos brincaram de aparecer. Era preciso resistir. Era preciso reinventar a travessia. Era preciso acenar ao mistério com alguma canção. A mãe haverá de cantar cantigas tristes e felizes para Helena. Ela haverá de saber da história. Não foi só a dor do parto que presenciou sua chegada, foi também a dor da partida. A fotografia do tio Arthur com Helena no colo já empresta outro significado à sua feição.

A lembrança de Bruno continuará a confirmar a beleza dos laços de amor. Laços que ultrapassam o que é matéria. São as pontes, edificadas pelos sentimentos, que nos mantêm unidos. Desencontraram Bruno e Helena? Não. Certamente estarão sempre unidos. Nós é que não compreendemos. Mistérios. Luminosos mistérios.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 25/03/2018

Os poderes mágicos do chá de Hibisco

Dizem alguns especialistas que o chá de hibisco faz bem, se for consumido de forma moderada. É um termogênico, que melhora a circulação. Ajuda na digestão e impede parte da absorção da gordura pelo organismo. E há tantos outros argumentos que fazem com que algumas pessoas profetizem futuros mais magros.

Márcia e Suzana foram ao shopping. Fazer compras. Suzana é uma amiga e tanto. É presente como se faz necessário ao convívio da amizade. É compreensiva quando a situação assim o exige. E sabe ouvir, o que é fundamental para quem acredita no exercício do amor. Pois bem, Márcia gosta de falar. Fala sem economias sobre os mais variados assuntos. E agora, o assunto predileto é o tal chá de hibisco.

Antes das compras, Márcia cismou que, como vai perder uma quantidade impressionante de quilos, era prudente comprar roupas menores. Suzana argumentou que era melhor esperar o tal emagrecimento. E depois comprariam. Márcia disse que não. Que era impossível não se despedir dos quilos que a incomodavam depois da descoberta do século, o chá de hibisco.

Foram as duas. Antes das lojas, sentaram-se em um café cujo aroma convidava para uma prosa. O atendente veio sorridente tirar o pedido. Suzana pediu um café e uma água com gás. Márcia estranhou, “Só isso?”. Suzana relembrou, “Acabamos de almoçar”. Márcia olhou para o relógio e não comentou a explicação da amiga. “Quero dois pães de queijo, uma empadinha de palmito que só vocês sabem fazer e um café com adoçante”. O moço já se preparava para ir resolver os pedidos, quando Márcia prosseguiu “Humm, me deu vontade de comer um pedaço pequeno de baguete com manteiga”. Suzana apenas olhou. O atendente perguntou: “Cancelo, então, os pães de queijo e…”. Antes que ele terminasse de perguntar, Márcia soltou: “Não cancele nada! Acrescente! E, por favor, já que estamos aqui, quero aquele brigadeirão, que é a especialidade da casa”. Ele anotou e se foi.

“Márcia, não tem como emagrecer desse jeito”. “Fique calma, Suzana, o chá de hibisco queima tudo. Pode comer à vontade, à noite, você toma uma xícara do chá que queima. E quando acorda, outra xícara. Se, por acaso, alguma coisa não queimou à noite, você queima no amanhecer, ainda em jejum. É muito importante estar em jejum”.

Suzana olha, pensa se fala ou se apenas permanece ali, acompanhando. Decide e prossegue: “Quem te disse isso? Algum médico, algum nutricionista?”. Márcia sorri o sorriso das sabidas. “Eu sei das coisas, minha amiga: eu sei das coisas”.

Depois do lauto lanche, foram elas para as lojas. Quando alguma vendedora sugeria que ela experimentasse, imediatamente ela explicava que estava comprando menor para depois do emagrecimento.

Suzana, envolta em dúvidas, perguntava para si mesma se, às vezes, é melhor acreditar em poderes mágicos e prosseguir sorrindo. A vida, afinal, tem tantos dissabores. Enquanto pensava, Márcia explicava que os 12 quilos que não foram convidados partiriam em, no máximo, 3 meses. E mais, pontificava que o correto era dizer emagrecer e não perder quilos. “Porque o que você perde você acha”.

Suzana perguntou por que ela não se matriculava em uma academia de ginástica, poderia ajudar. Além do que, a prática de atividade física faz muito bem à saúde. Márcia riu e se desculpou de não ter explicado a amiga um método revolucionário de atividade física, mágico praticamente. Ela comprou o programa e vai começar a fazer na próxima segunda-feira. “Você fica deitada, coloca uma música, é praticamente um banho de luzes. As luzes que você imagina fazem o exercício para você. No máximo, em 2 meses, você fica com abdômen totalmente definido. É a invenção do século”.

Suzana respira fundo e, em silêncio, rindo para si mesma, feliz de estar ali, acompanha a amiga em mais algumas lojas e depois decide jogar na mega-sena. “Quem sabe o número 12 seria um deles. Hibisco tem 7 letras. Chá tem 3”. E, assim, inspirada naquela jornada, vai escolhendo o número vencedor. Em frente à lotérica, um pastel de queijo acena indelicadamente para aquelas duas.

Qual o problema? Depois, o chá de hibisco queima tudo.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 11/03/2018

Bibi Ferreira, uma inspiração

Era um sábado à noite. O diretor da peça, Tadeu Aguiar, estava na entrada, recebendo as pessoas. Mulheres e homens vinham chegando de lugares diferentes do Rio de Janeiro para assistir ao musical em homenagem a Bibi Ferreira.

Algumas senhoras comentavam sobre os dias difíceis da cidade. A violência parecia ser o ponto central das conversas. Cenas assustadoras compunham um palco de abandonos e malfeitos. A cidade mais linda do mundo estava prostrada. Seus filhos com medo de sair de casa. Quantas vidas interrompidas prematuramente, quantas lágrimas molhando as famílias enlutadas!

No palco do teatro, a cena era outra. A estrela Amanda Acosta é Bibi Ferreira. Impecável. Com ela, um elenco – que sabe o que faz – traz a história de uma inspiradora. Nascida Abigail, elevou-se a Bibi desde sempre. Filha de Procópio Ferreira, sofreu os preconceitos de uma elite que não compreendia o significado do teatro. Proibida de estudar em uma escola, tornou-se professora dos talentos. Deu vida a personagens, com profissionalismo e paixão. O palco sempre foi seu confidente. Dos amores partidos. Das histórias que gostou de contar. Dos desassossegos tantos que lapidam a alma de um artista. Ela é nossa artista maior. Sua voz fez renascer Piaf, Amália, Sinatra. Sua atuação ensinou que “qualquer desatenção pode ser a gota d’água”. Fez mais. Cantou os excluídos em “My Fair Lady”, o glamour em “Hello Dolly”, a saudade em tangos espanhóis. Apresentou programas de televisão. Entrevistou com conteúdo e elegância. Viveu e vive a vida como um presente de Deus. Os fracassos, exigiu que partissem rapidamente. Nunca teve tempo para lamúrias. Os sucessos, recebeu-os com humildade. Generosa, dirigiu e incentivou tantos outros a prosseguir. A buscar o melhor em cada um deles.

A peça terminou. Que pena. Na plateia, os aplausos eram de gratidão por estarem ali. As senhoras que falavam sobre violência, antes do espetáculo, comentaram sobre a saudade de um outro Rio de Janeiro. Mais romântico, mais vagaroso, mais humano. As expressões franzidas deram espaço a sorrisos. Disse uma à outra: “Nossa, como eu estou leve, como esse musical me fez bem”. Eis a resistência!

A arte é redentora da humanidade. É a porta-voz da elevação. Estamos ajoelhados diante dos medos e da ausência da esperança. A arte nos põe de pé. Ela nos faz olhar para o amanhã. Para “O homem de La Mancha”, também vivido por Bibi, levando-nos a prosseguir quixotescamente, enfrentando moinhos de vento e muros de horror.

Sim, os erros dos que exercem o poder constroem muros que separam pessoas. Umas das outras e elas de seus sonhos. Bibi Ferreira é também uma construtora, mas de inspirações. Aos 95 anos, empresta sua voz e seu talento para trazer a tal leveza que aquelas senhoras comentaram ao final do espetáculo.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 25/02/2018

As cinzas e os dias que virão

Havia uma penteadeira com algumas gavetas que guardavam algumas fotografias. Havia também alguns livros antigos e algumas agendas de papel. No chão, ao lado da penteadeira, algumas listas de telefone. Ana não sabia por que ainda não havia jogado fora. Eram acúmulos e acúmulos em uma casa pequena. “Pequena era a vida”, pensava ela. Tudo havia passado tão depressa. Olha alguns álbuns e se recorda de algumas datas. O pai era muito religioso. Livros de oração e de novenas também foram se acumulando. Joaquim já morrera há 20 anos. “Nossa!”, assusta-se ela. Ah, o tempo!

Vê livros antigos de antigas campanhas da fraternidade. Olha para o relógio e decide que vai à missa. O pai gostava de explicar o sentido da quarta-feira de cinzas. Iam todos. O pai, a mãe, os 2 irmãos e Ana. E voltavam com o sinal na testa.

Era ainda pequena quando o pai dizia que as cinzas significam a nossa fragilidade. “Um tombo, apenas, e nossa vida, aqui na terra, termina”, era o exemplo que dava o pai. “Somos frágeis”, insistia ele.

Recorda-se Ana de que a expressão que se usa nesses dias é algo como isso: “Lembra que és pó e ao pó retornarás”. Ela não entendia direito a relação do pó com a fragilidade humana. Nem com a história do tombo. Quando criança, achava lindo tudo o que o pai dizia e sorria para ele. Na Quaresma, tempo que se inicia na quarta-feira de cinzas e que prepara a Páscoa, acostumavam-se a fazer algum tipo de sacrifício. Não comiam carne, não bebiam. E cada um escolhia algo de que gostava muito para deixar de comer por 40 dias. Ana escolhia o chocolate, depois se arrependia, mas seguia fazendo o tal do sacrifício. O pai explicava que era para sentir a falta que sentiam aqueles que não tinham alimentos. É disso que ela se lembra. Além de outros ensinamentos bonitos do pai.

Falar mal de alguém era errado. Fazer mal para alguém, também. Se as cinzas representavam a nossa fragilidade e a necessidade de sermos humildes, os dias que seguiam tinham de ser a vivência desse ensinamento. Foi nessa família que Ana cresceu e envelheceu. A mãe morreu quando ela ainda era menina. Os irmãos tomaram o seu caminho. Encontram-se com alguma frequência, mas cada um tem a sua família. Ana não se casou. Gosta da vida que leva. Aposentou-se como secretária em uma grande empresa. Tem algumas economias, não muitas, mas o suficiente para viver com dignidade. Gosta do bairro em que vive. Gosta de andar a pé. De ir à padaria, ao mercado, à farmácia, à igreja. Hoje, tem medo da violência que vem crescendo e levando embora vidas e esperança. “Os tempos andam sombrios”, pensa ela. Falta Deus no coração das pessoas.

Ela olha para a foto do pai, novamente, e viaja para os dias passados. Rezavam antes das refeições. Rezavam antes de dormir e quando acordavam. O pai preferia ser enganado a enganar, injustiçado a praticar injustiça. Era um homem bom. Decididamente, era um homem bom. Ela se lembra disso. Coisas do passado. Coisas que não passam.

“Todos nós morreremos”, prossegue ela nos seus pensamentos. Por que, então, a arrogância, por que o desprezo ao outro, por que nos acharmos melhores?

Decide ligar para os irmãos para combinarem alguma coisa. As fotos aumentaram a saudade. Os que se foram podem ser revisitados no baú das lembranças, mas os que estão aguardam algum aceno. Na missa, rezaria pela alma dos pais. “A fé melhora as pessoas”, balbuciava ela.

Lembrou-se da tia doente. A única irmã do pai ainda viva. Amanhã mesmo faria um bolo de coco com abacaxi para adoçar o seu entardecer.

As cinzas. “Sim, as cinzas e os dias que virão”, pensa ela. “Serão melhores. Serei melhor”, decide. Sempre há tempo para melhorar. Ana fecha a gaveta e abre um sorriso lindo, lembrança de alguma história que a visitou.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 18/02/2018

Domingo de carnaval

O dia amanheceu preguiçoso. É domingo. É domingo de carnaval. Em um ponto alto da cidade, uma tal Maria engole o seu café com leite e pensa no desfile da sua escola de samba. Foram meses de preparação. Maria trabalha como costureira. E, desde sempre, desfila usando a fantasia que ela mesma produz. A cada ano sua escola conta uma história. Sua escola e, também, as outras.

Desfilam na avenida personagens, lugares, intenções. A música já está decorada. Sambar, ela sabe muito bem. O carnaval faz reviver, nas memórias de Maria, vidas que se cruzaram com a sua. Amores que já se foram. Decepções. Vibrações. Quanta história o seu barraco já presenciou. No morro, ela canta os sambas antigos.

O marido era baterista. Morreu dessas mortes que ainda existem aos montes. Bala perdida. Perdeu Maria, naquele dia, um pedaço significativo do seu coração. Era cedo demais para despedidas. Morreu ele em um dia ensolarado. Num mês de agosto. Véspera do dia dos pais. As duas filhas de Maria cresceram sem pai. A vida foi e é dura para elas. O tempo foi cimentando ressentimentos. E a alegria voltou a iluminar as manhãs daquele barraco. A memória do pai ainda vive ali. O nome do pai está no filho da filha mais velha de Maria. Ah, Maria tem seis netos. Vão todos juntos desfilar na escola de samba.

Maria gosta de costurar. Fala sozinha enquanto ouve o barulho da máquina quase nova. A velha ainda mora na casa em caso de necessidade ou apenas por uma recordação do tempo dos inícios. A nova, mais moderna, foi presente da segunda filha. As três mulheres viveram sozinhas durante algum tempo. Até que o tempo trouxe os seus maridos. Maria não quis se casar novamente. Teve alguns enredos breves, mas preferiu dormir apenas com suas lembranças. Gosta é de carnaval. Não é dada a bebidas. Não precisa delas para se alegrar. Insiste que gosta de cantar os sambas enredos de outros carnavais. Cada um contando uma história. Explica que acha lindo, em tão pouco tempo, dizer tanta coisa em uma avenida. Suas clientes levam roupas para serem arrumadas e sonhos para serem realizados. Costura Maria vestidos de noiva e rompe rasgos causados por quedas ocasionais. Costura botões e faz bainhas. Inventa modelos e ouve ideias. Fica ali entre panos e linhas se esmerando na arte de embelezar a vida.

Às noites, vai à oração ou aos ensaios de carnaval. Não acha que sejam incompatíveis. Pecado é fazer mal ao outro. E fazer mal se faz em igrejas ou em escolas de samba. O bem, também. Apesar da dor da perda do marido e de tantas outras que foram chacoalhando os seus sentimentos, Maria se alimenta de bondades. Gosta de gostar das pessoas. De surpreendê-las com alguma gentileza. De sorrir um sorriso profético. De dias melhores. De tempos menos duros.

Fez ela o vestido de casamento das duas filhas. Fez as primeiras roupas dos primeiros netos. Fez fantasias de tantos mestres-salas e porta-bandeiras que nem se lembra. E as roupas de comissões de frente. E as dos integrantes da bateria. Bateria. Quando pensa nisso, enxuga uma lágrima teimosa que a faz lembrar do seu marido experimentando, ano a ano, as roupas que usaria para desfilar na avenida.

Na avenida da vida, Maria resolveu nunca deixar de estar. No seu jeito simples de viver os carnavais e todos os outros dias. Enquanto engole o café com leite, Maria olha para o pão com manteiga e se delicia com o prazer de poder se alimentar. Cantarola sozinha o samba-enredo deste ano. Para um pouco, Olha para o dia que está nascendo e agradece a Deus por estar viva. E por viver mais um carnaval. Daqui a pouco a casa estará cheia. As filhas moram perto. E as histórias moram junto.

O dia amanheceu preguiçoso, mas vai demorar para ir embora. É carnaval…

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 11/02/2018

Dia da saudade

O dia 30 de janeiro é o dia da saudade. Assim decidiram. Só não podem decidir que seja este o único dia em que se possa sentir saudade.

Rubem Alves dizia que “a saudade é nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”. Voltar ao tempo da inocência? Voltar ao lugar em que imaginávamos que todos fossem bons? Voltar à antiga fotografia, quando estava ela completa, quando ninguém havia partido? Voltar ao olhar que tínhamos, quando pela primeira vez nos apaixonamos? Voltar aos ditos envergonhados quando queríamos saber o que depois de algum tempo virou rotina?

A saudade tem o poder de perfumar a rotina? Um andar de bicicleta acompanhado. Depois de termos aprendido. Um nadar de rio. Um procurar quem surgiu e desapareceu. Um tentar entender o sentimento que nos assalta e que muda nosso estar no mundo.

Saudade da paixão. Da paixão cortante que nos fazia provar que estávamos vivos. Um banho de mar. Saudade da primeira vez que vimos a imensidão do mar. Suas águas caprichosas. O ir e vir. O trazer e o levar. O apagar. O recomeçar. Saudade do sol se espreguiçando e anunciando novidades ou de sua despedida. Sabe ele a hora de partir. E lá vem a noite e seus mistérios. Saudade dos anoiteceres acompanhados. A foto pode estar com alguma ausência, mas a memória a guarda como se guarda uma preciosidade.

Saudade de acreditar em amor. De acreditar em verdade. As mentiras foram chegando, uma a uma, e desmoronando sonhos e nos apresentando pesadelos. Saudade de uma noite de sono bom. Quando a preocupação que tínhamos era um jeito novo de brincar. Apenas isso. Saudade do colo da mãe. Saudade do choro do filho. Saudade das mãos do pai. Saudade do engatinhar. E os aniversários festivos. E os natais alegres. E as comidas feitas com temperos de conversas. Era bom estar na cozinha. Os calores nos aqueciam.

Saudade das músicas de ontem, que nos resgatam tempos, que nos rasgam sentimentos. Até dos choros se pode ter saudade. Bob Marley disse sobre a saudade. que “é um sentimento que, quando não cabe no coração, escorre pelos olhos”. Saudade do tempo que veio antes do endurecimento. Chorar era bom quando ainda não tínhamos vergonha de expressar os sentimentos.

Saudade da liberdade. As amarras foram surgindo e nos prenderam desprevenidos. Onde estão as chaves que abrem as fechaduras para que possamos novamente sorrir? Saudade do sorriso. Do sorriso sincero nascido de um gesto simples de um cotidiano simples repleto de significados. Saudade de não precisar explicar nem entender, apenas viver.

Saudade de dançar sem precisar comparar com outro dançarino para saber quem dança melhor. Apenas se entregar, se divertir. Sem preocupações nem ameaças.

Saudade de mim, antes das tormentas. Tormentas que talvez tenha eu mesmo autorizado.

E, então?

A saudade é sobre o ontem, mas é uma inspiração para o que ainda virá. Sempre vem. Enquanto estamos vivos, sempre vem.

Que o hoje seja como um dia sonhamos. Para que amanhã uma lágrima de emoção nos acompanhe quando olharmos para o que agora estamos decidindo, fazendo.

Hoje também é dia da saudade.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 04/02/2018