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O voto de Sebastiana

Sebastiana é uma mulher de poucas palavras. Aprendeu que só se fala o necessário. Não gosta de opinar sobre a vida das pessoas, acha um desperdício de tempo e de energia. Gosta das suas coisas e dos seus amigos, ou melhor, dos seus amigos e das suas coisas. Não tem muitos amigos porque é da crença de que um amigo merece atenção especial. Se necessário, passa horas ouvindo alguma dor que incomoda um amigo seu. E, depois, diz o que deve ser dito, pensado, refletido.

Sebastiana acordou, tomou o café que ela mesma preparou e buscou na penteadeira a colinha que fez para levar até o colégio em que vota. São muitos cargos, muitos números diferentes, levar anotado facilita a vida, decide ela.

O voto de Sebastiana é dela. A escolha, ela não terceirizou. Ouviu comentários daqui e dali. Ficou surpresa com os xingamentos. Achou desnecessária a quantidade de brigas pessoais ou pelas redes novas que criaram para unir as pessoas.

Ouviu quem argumentava em favor desse ou daquele. Enquanto ouvia, dava desconto para as mentiras que falavam. Sebastiana nunca entendeu por que se busca história mentirosa para fazer com que a história que se quer contar pareça verdadeira. Na sua simplicidade, pensa que o melhor era só dizer o que se sabe. Uma amiga disse que essa história de colocar mentira no meio da verdade é a tal da fakenews ou da pós-verdade. Ela não compreendeu muito bem, mas sabe que a mentira não leva a lugar nenhum.

Na rua, em frente à casa em que mora, ouviu uma discussão em que um chamava o outro de burro por votar em um candidato que o outro não concordava. Ela apenas mexeu com a cabeça pensando que não é assim que se convence.

Para cada cargo, Sebastiana pesquisou do seu jeito. Ouviu o líder da sua Igreja pedindo que votasse em um. Ela gosta do seu líder, mas dá a ele o poder de ser apenas o seu líder religioso; no seu voto, manda ela. Ouviu um amigo do seu filho, que ela considera um filho, dizendo que o melhor era um outro candidato. Ouviu. Anotou. E pesquisou. Nem filho nem amigo de filho decide por ela.

Sebastiana ama o Brasil. Acha que há muita coisa errada, mas que há também muita coisa certa. Acompanha com desconfiança o que dizem as pessoas da imprensa. É difícil saber a verdade, reflete ela.

O filho de Sebastiana é professor de filosofia, o que lhe dá muito orgulho. Ela se lembra de uma vez em que ele estava conversando com o amigo sobre um filósofo que dizia que era preciso duvidar de tudo. Ela não se lembra mais do nome do filósofo, mas gosta do ensinamento.

O melhor é não ter radicalismos. Ser do contra e votar por ódio não é com ela. Ser a favor sem conhecer em quem se vai votar, também não.

O café de Sebastiana é simples, como tudo em sua vida. Nada de brigas nem de exageros. Viver é uma delícia, é essa a sua escolha. Em quem Sebastiana vai votar? Em quem ela decidiu que será melhor para cuidar do país que ela ama.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 07/10/2018

O tempo da sabedoria

Maria é o seu nome. Moradora da Tijuca. Observadora do comportamento humano. Das mudanças que o tempo é capaz de proporcionar.

Tempo de vida, ela tem. No mês que vem, celebra 96 anos de idade. Maria tem gestos marcantes. Anda com cuidado. Já percebeu que a pressa traz tropeços dolorosos. Come vagarosamente. Sabe o valor de cada mastigar. De cada experimentar.

O café fumegante faz Maria esperar. Enquanto isso, corta, vagarosamente, o pão. E sorri o sorriso dos que amam a vida. Maria já teve suas perdas. Uma filha lhe foi tirada por um câncer apressado. Um genro se foi, prematuramente, por um coração que teimou em parar antes.

O marido, ah, sobre o marido, ela tece uma história na outra. “Miguel sempre fez minha vontade”. E, enquanto molha o pão no café, emenda: “Claro que minhas vontades eram sempre boas para a família”.

Fala do pai que já morreu há muito. Conta com detalhes os seus últimos dias. Os filhos, os setes filhos, estavam com ele. Conta que um demorou a chegar. E o pai esperou. Só adormeceu em seus braços para não mais acordar quando estava completo o álbum do amor.

Come um pedaço de pão. A conversa vai para os problemas de hoje. Maria apenas ouve. A filha fala das preocupações de ser mãe, da violência da cidade, do futuro. Maria ouve. Uma amiga diz sobre o mundo que está se perdendo. Maria, depois de um gole de café, participa da história. “Precisamos ter paciência. Aos poucos, tudo se ajeita”. Um sorriso. E o prosseguir: “Oração, falar com Deus ajuda muito”.

Eu observava as suas mãos. As marcas do tempo não tiraram a beleza. Observava o seu olhar enquanto os outros falavam. A atenção ao outro é prova de amor e de sabedoria. Observava o seu texto mesmo quando discordava do que alguém havia dito. Cuidadoso. Sinal de respeito.

Falamos sobre a formatura da neta. Certamente irá ao baile. Sim. “Os acontecimentos da vida devem ser celebrados”. Quando falaram de doenças, ela não alimentou as importâncias. Elas vêm e vão. “Os remédios certos, a paciência e a fé em Deus ajudam muito”. Depois, explicou que a ordem correta é, primeiramente, a fé em Deus.

Maria é uma mulher de fé. O seu apartamento é habitado por histórias lindas e por despedidas. Há pouco tempo, ela fez uma reforma. É preciso pintar as paredes. É preciso distribuir o que não se usa. Nada de acúmulos a não ser o aprendizado que o tempo pode nos proporcionar. Se estivermos atentos.

Estive atento naquele café. Na rua, os barulhos não nos dispersavam. Há barulhos por todos os lados.

Antes de me despedir, ela me pediu que voltasse sempre. Como pede sempre. Eu sempre volto. Porque aprendo. Porque compreendo o tempo da sabedoria. Porque amo estar ali.

Alguns jovens têm nenhuma paciência com os mais velhos. Desperdício. O entardecer nos confere espetáculos grandiosos. É o poder do dia antes das despedidas. Ontem mesmo fiquei mais uma vez extasiado diante de um pôr do sol nas montanhas dos meus sonhos.

Maria é o seu nome. Mora na Tijuca. Mora em muitos outros lugares e está pronta para ensinar. Feliz nome.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 01/07/2018

Flor de Lótus

Nasce a Flor de Lótus em águas lamacentas.

Nasce e cresce bela. Esquece o cheiro das sujeiras e utiliza o seu poder perfumador. Deixa de lado o estagnado e cumpre o seu papel de embelezar o universo.

Há muitos mitos antigos sobre essa Flor, há religiões que se debruçam sobre o seu simbolismo, há explicações dos observadores da natureza que veem, nela, uma inspiração para a ação humana.

Vivemos em lugares lamacentos. É fato. Deparamo-nos com todo tipo de perversidade. Atos violentos nos emparedam nos cantos do medo. Cantamos a canção da tristeza quando somos traídos por um amigo, por um amor. Assustamo-nos com ditos ou malditos de quem até ontem estava por perto.

Roubam-nos a linda inocência, aquela que quer de nós uma única persistência, a de continuarmos acreditando no ser humano. Mas há seres humanos por aí nos provando que o melhor é desconfiar, que o melhor é revelar-se o mínimo possível, que o melhor é dizer nada.

A fotografia da humanidade parece nos trazer um rio de sujeiras. E não é só hoje. Quantas mulheres e homens corretos foram injustiçados, foram vilipendiados, foram mortos? De suas mortes, entretanto, restaram sementes de novos tempos. Mas por que precisaram sofrer tanto? Por que a incompreensão deu o tom da melodia de suas vidas?

A Flor de Lótus não vive de perguntas, mas de florescimentos. Miraculosamente, a flor e o fruto crescem juntos. Sem se preocupar com os espaços em que estão. Sem reivindicar outros cenários. Sem exigir companhias melhores. Cumpre ela, a flor, o seu papel. Crescendo para o alto. Embelezando o ambiente em que nasceu. Felizmente, ela está em lugares diferentes e em cores diferentes para provar que é possível. Em qualquer parte desse mundo tão vasto, é possível perfumar.

Os lodos lamacentos não fazem história. Os perversos, também não. Pouco se sabe dos que estavam com as pedras nas mãos para atingir a pecadora. De Jesus e daquela mulher, o mundo não se esqueceu. Pouco se sabe sobre os que tentaram atingir a honra de Madre Teresa de Calcutá ou de Irmã Dulce ou de Mandela, o homem do perdão. Mas suas histórias foram capazes de florescer em ambientes inóspitos. E, nesses ambientes, perfumaram a vida de irmãos seus, humanos errantes ávidos por algum cuidado.

Já escrevi sobre os perversos, sobre os que desperdiçam a vida tentando destruir vidas alheias. Nunca vi um perverso feliz. São atormentados que tentam se alimentar de restos de destruição. Tristes vidas sem tema, sem norte, sem perfume.

Sobre esses, não nos ocupemos muito. Ocupemo-nos em contemplar a Flor de Lótus e seus místicos significados. Bela, encantada, inspiradora.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 24/06/2018

A arte de recomeçar

Vai Amanda de porta em porta em busca de uma janela de oportunidade.

Perdeu o emprego. Perdeu referenciais. Acostumada a acordar e ir para o trabalho. Acostumada a receber, no início do mês, o dinheiro que não era muito, mas que dava conta das contas que chegavam. Acostumada a preencher a rotina, estava, agora, Amanda, sem rumo.

Juliano perdeu a namorada. Anos de convivência e promessa de construção. A história desabou. As razões, Juliano profere palavras pouco doces ao amor que partiu. Está partido, Juliano. Entre o dormir e o acordar de noites intermináveis, a visão da ex-namorada com um outro. Um que era amigo seu. Um que dividia refeições e risos, juntos. Juntos estão eles agora, pensa Juliano, separado de seu amor.

Letícia perdeu o filho. Um acidente rasgou o tecido lindo que costuravam. O carro que o atropelou se foi. Foi também a alegria de Letícia. Arrumar o quarto, separar os pertences, reler antigos bilhetes. Fitar as tantas fotografias que davam a impressão de que ninguém retiraria daquelas vidas a necessária continuidade. O filho já não mais está. O colo está vazio. O coração, também.

Amanda, Juliano e Letícia pertencem ao gênero humano. São feitos de poções mágicas de amor e de sementes de todos os tipos de sentimentos. Brotam os que são cuidados. Fenecem os que são esquecidos. Regar a saudade, a compaixão, a simplicidade, a ternura vai iluminando semblantes e aconchegando visitadores que se aproximam. Regar a amargura, o ódio, a arrogância vai enfraquecendo os músculos e desestimulando o recomeçar.

A dor de Letícia, certamente, é a mais doída. Mas doem, também, as dores de Amanda e Juliano. E as outras dores em tantos outros que existem por aí. Viver sem dor não é possível. Viver sem surpresas também não. Mas o que há depois? Ou a desistência ou o recomeço. Ou a entrega ou a coragem.

É preciso coragem para recomeçar. Para acordar e pensar no filho que se foi e prosseguir sabendo que as estações de partida estão em todos os lugares independentemente da nossa vontade. Saber que uma demissão não põe fim a nossa vida. Saber que desilusões amorosas são feridas que o tempo é capaz de cicatrizar.

Há outros recomeços. Todos necessários. Vejam os que perderam tudo em uma guerra e recomeçaram. Ou os que venceram uma doença que partiu, mas que deixou limitações. Ou os que tiveram de mudar de cidade ou de país. Ou os que foram traídos ou enganados. Foi fácil? Cada um sabe o tamanho do seu calvário. Há caminhos que nos convidam a viver outras paisagens. O caminho interno é o mais importante deles. Percorrermos as veias abertas da dor e olharmos adiante. O que pulsa. O que nos relembra que estamos vivos e que é bom prosseguir. Depois das surpresas que não nos agradaram, podemos nos surpreender com o que nem imaginávamos que encontraríamos. Mas, para isso, é preciso prosseguir. Sempre. Com arte. Porque é assim que atraímos o sorriso e suas nobres razões.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 17/06/2018

A Caravana de Chico Buarque

Paulo e Fátima são namorados. Faz algum tempo. Conheceram-se em uma esquina em uma antiga viela na velha Portugal. Ele, brasileiro; ela, nascida no Porto. Viram-se pela primeira vez quando Paulo pedia uma informação. Ela o informou. Olharam-se com delicadeza e, depois de caminharem por algum tempo, resolveram não mais se despedir.

Paulo trabalha com turismo, Fátima é professora. O primeiro inverno na Europa não foi fácil para Paulo, carioca da Tijuca. Acostumado ao calor, precisou de roupas diferentes e do diferente jeito de Fátima para o necessário agasalhar.

Estavam agasalhados, os dois, no dia em que portugueses e brasileiros lotaram um tradicional teatro do Porto para aplaudir Chico Buarque de Holanda.

Chico começou sua Caravana na timidez habitual. O público foi ao delírio. Autor de letras que surpreendem pela diversidade de temas e de ditos poéticos, embaixador de um estilo de fazer da canção um grito de liberdade, de identidade, de amor. Conhece Chico a alma da mulher e a descreve com maestria. Percorre os sentimentos humanos de separação e de encontro, a gota d’água da desatenção ou o tempo da delicadeza.

A música, como tem de ser, foi tomando o ambiente. Mulheres e homens cantavam juntos. Chico sorria. Do seu jeito. De quem disfarça a genialidade. De quem compreende o ofício de levar sua Caravana além-mar.

Na terra de Camões e de Fernando Pessoa, Chico, um brasileiro, é ovacionado. Os gritos de gênio se misturam aos aplausos pedindo bis. Ele volta. Canta mais. Termina. O púbico quer ficar. Volta novamente e, novamente, emociona.

Foi quando Paulo, o brasileiro, olhou para Fátima, a portuguesa, e entregou a ela um anel de enlace. Fátima sorriu. Paulo sussurrou algo em seu ouvido. Ela acenou com a cabeça dizendo “sim”.

Paulo, o carioca, malandro bom, escolheu o melhor dia para agasalhar os outros dias que viriam em sua vida. Fátima, professora de crianças, aprovou o romantismo, a escolha da canção e da ocasião.

Chico talvez nem saiba, mas muitas histórias de amor começaram assim: em uma Caravana de canções decidida a conquistar outros mares. O eterno guri já passou dos 70 e está longe de perder o poder de navegar.

No mar salgado de Portugal, no dia do show de Chico, nada de lágrimas a não ser as de emoção. Não sei em que dia Fátima e Paulo se casarão. Nem em que Igreja. Nem o que servirão para celebrar. Sei que, do pouco que ouvi e vi, o que já aconteceu foi mágico, e romântico, e original.

Na saída, a noite já estava mais silenciosa. Aqui e ali, pequenos trechos de cantorias das canções de Chico. As velhas ruelas e suas esquinas aguardavam outros encontros.

Havia luar.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 10/06/2018

Ainda sobre Pentecostes

Foi no domingo passado a grande festa do Espírito Santo. Há muitas reflexões que podem ser continuadas em nosso olhar. Vamos a duas, daqueles fatos, daquele dia, daquele momento espiritual que não se encerra em uma semana, nem em um século. Há dois mil anos, estavam os que, com Jesus, aguardavam a chegada do Espírito Santo.

Duas reflexões? Vamos lá. A primeira sobre o perdão. A segunda sobre a comunhão.

Perdão? Os que leram um pouco da história dos últimos dias de Jesus devem se lembrar do discípulo que Ele chamou para que fosse a pedra angular da comunidade que dele haveria de nascer: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Pois bem, Pedro, antes do cantar do galo, negou Jesus três vezes. Exatamente isso, no momento em que Jesus mais precisava, Pedro chegou a dizer que sequer o conhecia. Poucos dias haviam se passado da morte de Jesus. E Pedro, naquele dia, estava lá, aguardando o Espírito Santo, com a mãe de Jesus. Maria poderia ter expulsado Pedro, poderia ter desabafado: “Você traiu meu filho!”. Poderia ter dito: “Com você, eu não fico!”. O que fez Maria? Apenas compreendeu. O medo de Pedro não fez dele um homem menor. A compreensão é irmã do perdão.

A outra reflexão é sobre as tantas línguas que estavam por lá. Havia gente de toda parte. E cada um falava uma língua. Mas quando os discípulos, cheios do Espírito Santo, começaram a falar, todos compreenderam o que eles diziam. Ninguém precisou traduzir nada. O Espírito respeitou cada um, com sua língua, com sua história, com seu jeito de ser, com suas imperfeições e seus medos. Porque é assim que deve ser. Nada de superioridade. Nada de raça pura. Nada de hegemonias. Somos todos sedentos de um fogo que nos ilumine e nos aqueça. Somos todos errantes, carentes de perdão, habitantes de medos tantos que nos levam a negar a quem mais amamos. Mas depois corrigimos. E, quando encontramos uma Maria em nossa espera, os erros se vão mais rapidamente.

Esperar o Espírito Santo não é apenas para um dia. É fazer dos dias presentes de Deus, razões especiais para existir.

Maria perdoou Pedro que perdoou a si mesmo. O auto perdão também não é simples. E partiram eles para a comunhão. Com línguas, raças, jeitos de ser e de viver diferentes, mas com a consciência de que aqueles dias existiram para que os dias de hoje pudessem ser melhores. Que sejam.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 27/05/2018

Sobre Deus, homens e paisagens

O dia no Rio de Janeiro estava lindo. Hector era quem dirigia o carro. Monica olhou a paisagem e não economizou nos ditos nascidos de mais um espanto. É assim que ela define a cidade. Espanto, aqui, significa encantamento, êxtase, emoção. As imagens que vão desfilando pelos olhos surpreendem mesmo que sejam vistas todos os dias. Monica fez o comentário e, em forma de oração, externou sua crença. Deus existe. Deus caprichou em sua obra. É um Artista perfeito.

Hector ouviu os comentários, concordando com a cabeça. Durante um silêncio qualquer, ele resolveu desabafar. “Deus caprichou, mas o homem estragou”. E prosseguiu comentando sobre a falta de cuidado com a cidade, sobre o abandono, sobre os desmandos que já são conhecidos.

Monica voltou ao que foi dito. “Deus caprichou, mas o homem estragou”. Enquanto via o Rio de Janeiro, pensava nos problemas tantos que a atormentavam pelos estragos feitos pelos homens. Se a criação inspira a harmonia, o que significa tanta desavença? Palavras ditas sem cuidado, palavras que perfuram sentimentos e causam feridas. Se os dias se sucedem sem pressa, por que tanta briga com a demora pela cicatrização? O sofrimento tem sua razão de existir, pensava ela. Se há tanta beleza para ser contemplada, por que se perde tanto tempo com visões que desagradam, que desagregam?

Sim, Deus caprichou. Não é possível dizer que a humanidade é um projeto que não deu certo. Há tantos inspiradores, há tanta felicidade para ser alcançada com um simples gole de água refrescante, há crianças começando o existir.

Monica pensa em uma menina que dança o ballet do jeito que quer. Sem muita preocupação com os movimentos. Desencontra-se sem medo. Sorri da lembrança e imagina que talvez ela devesse fazer dança contemporânea. Mais livre, talvez. A menina é bela, e ela a ama.

Hector faz um outro comentário. O sol entra pelas janelas e aquece aquela prosa. O carro prossegue o seu destino. Os pensamentos, também. Monica rascunha nos sentimentos muitas impressões. Trabalha com arte. Tem compromisso com a arte. Olha um outro ponto da cidade e decide que a cidade em que vive é uma obra de arte. E o ser humano, também. Se a cidade está malcuidada, se os seres humanos estão estragados, a culpa não é do Artista Maior. Deus nos deu a liberdade para escolhermos os trajetos e até para mudarmos as paisagens.

A música, no rádio de Hector, fala de uma história de amor que se acabou. Monica presta atenção. Cantarola junto. Agradece ao dia que estava ainda espreguiçando. Era bom estar ali. Hector comenta da mulher que nasceu em outro país e que ama o Brasil. Monica ouve. Ela gosta de ouvir. Sem pressa. Respira fundo e deseja que o dia seja bom.

Param em um sinal. Daqui a pouco, prosseguirão. O que virá depois? Se depender de Deus, só belezas… o que houve com os homens, então? O melhor a fazer é prosseguir. Próximo ao asfalto, algumas pequenas árvores garantem que vão crescer.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 20/05/2018

Dia das mães

Há um tecido de sentimentos reservado para o dia de hoje. Nele, encontram-se frases que lembram fases que marcam vidas. Mãe. Simplesmente assim, mãe.

Há filhos que, no dia de hoje, não podem abraçar a sua mãe. Já se foram. Já voltaram para o jardim sagrado de onde vieram. Deixaram o que tinham de deixar por aqui e partiram. Não há o colo embalante, não há um semblante sequer para aquecer os dias duros. Dureza de vida é essa a de viver sem mãe. Mas é assim que é. Dor e esperança. O amor não termina aqui. Encontros ainda surpreenderão os que, hoje, acham falta. Os que hoje fecham os barulhos e viajam pelo tempo bom.

Há filhos que, hoje, encontrarão suas mães. Alguns presentes serão entregues. Algumas palavras serão ditas. A refeição recheada de afetos.

Há mães que terão lágrimas por companheiras, lembrando dos filhos que partiram antes. Vida difícil. O justo era que estivessem todos juntos. Já não estão.

Há outras mães que visitam um lugar do passado para encontrar a razão que fez com que filhos seus vivessem vidas erráticas. Nas portas das penitenciárias, há mães e há lágrimas sentidas. Um filho seu passa parte da vida sem o sabor de ir para onde quer. Talvez, nas idas, tenham errado; talvez, não. Nem sempre a justiça é justa.

Há mães que acariciam o ventre que cresce dizendo que, em algum tempo, o tempo da vida será diferente. Os filhos serão os senhores do tempo. Nunca mais serão as mesmas. Dias entremeados de alegria infinda e de preocupantes ausências. Na infância, os cuidados são uns; no crescer da adolescência, são outros. Na maturidade, a mãe continua sendo mãe e continua lavando o rosto, matinalmente, com desejos de amor por seus filhos. Com esperança de que sejam sempre bons. Com fé de que o plantio não se perca em meio a tantas confusões. Somos sempre meninos, nós, os filhos. Sempre detentores do direito legítimo de sermos tratados como carentes. Carecemos dela. Da mãe. Carecemos do tempero que nos possibilitou proporcionar algum sabor à vida.

Nas histórias contadas por nossas mães, nos embalos, nos cuidados, fomos moldando boa parte do que somos. E aqui estamos em mais um dia das mães.

Para celebrar. Para agradecer. Para tecer um poema com a tinta da nossa disposição em nunca deixar de amar.

Há alguns que acham desnecessário um dia das mães. Eu não acho. O simbólico nos ajuda a lembrar o que nunca deveríamos esquecer. Todos os dias é dia de um olhar para ela, onde quer que ela esteja, e de dizer, para dentro ou para fora, “Eu te amo, mãe”.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 13/05/2018

Amanheceu

Era aniversário de Guilherme. Acordou ele antes do horário. Nem sabe a razão. Havia dormido tarde, mas acordou cedo, muito cedo. Resolveu não brigar com a ausência de sono e deu a noite por dormida. E abriu as janelas. E viu a lua. Imensa. Cheia. Repleta de mistérios. Inspiradora. Ficou ali no parapeito, apenas em êxtase. Parecia um presente para o dia do seu aniversário.

Alguns barulhos de dentro da casa desviaram sua atenção. Foi estar com os seus. Recebeu abraços. Mas a janela o chamava de volta. Imaginava ele os que dormiam e desperdiçavam esse espetáculo. Queria dizer ao mundo: “Parem de brigar e vejam a lua!”. E, de repente, o sol veio surgindo timidamente. E a lua sem pressa de partir. Juntos ali. Vez em quando, isso acontece. Sem disputas. Cada um compreendendo o seu papel.

Guilherme gosta de rabiscar poemas. Quem gosta de fazê-los precisa gostar de observar. Paisagens e pessoas. Sentimentos.

Pensou ele nos anos que se passaram. Nas histórias tristes que, um dia, ocuparam seu dia. Nos rompantes de raiva que passaram. Nos ditos dos quais se arrependeu. Pensou nas conquistas. Meu Deus, foram tantas! Decidiu que o dia do aniversário não era um dia de pedir. Era um dia de agradecer. E agradeceu. Foi se lembrando dos idos anos de mocidade. E agradeceu. Da família, e agradeceu. Da escolha profissional. Também agradeceu. Lembrou-se de sua mulher amada que morreu antes do dia certo. O certo seria, neste dia, ela estar com ele. Não dependeu dele nem a doença nem a partida. Agradeceu por ter cuidado dela até o fim.

Agradeceu os sofrimentos. Fizeram-no mais consciente de sua fragilidade. Houve tempos em que se achava senhor de tudo. Não. Ninguém é. Ninguém tem todo o poder em suas mãos. Ninguém está imune ao erro, à falta, à injustiça, à dor.

Naquele amanhecer de lua cheia, Guilherme não sentia dor alguma. A idade traz algumas complicações. Mas estava feliz. Decididamente, feliz. Mais um ano chegava e dava a ele a oportunidade de contemplar e de fazer. Lembrou, com algumas lágrimas nos olhos, dos pais que já se foram. Eram bons. Essencialmente bons.

A algazarra da cozinha, com Dona Silvia preparando o bolo, roubou dele um sorriso. “Que cheiro bom, cheiro de aniversário!”.

Arrumou-se de felicidade e foi se encontrar com o dia.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 06/05/2018

Uma voz que acalma

Amanda rompeu sua história de amor. Há nela um emaranhado de arrependimentos e teimosia. Talvez uma medrosa teimosia.

A vizinha de Amanda, Malu, uma mulher alguns anos mais velha, tornou-se sua conselheira. E aí surgiram os problemas. O marido, Felipe, sempre demonstrou ser Amanda a mulher que escolhera para viver as estações da sua vida. Eram felizes nas diferenças. Felipe, um trabalhador contumaz. Amanda, em meio a ditos brincalhões, falava que o bem da vida estava no ócio, no nada fazer, embora trabalhasse também. Felipe sorria das infantilidades da mulher. A paixão minimiza as contrariedades.

Como tinha mais tempo que Felipe, Amanda vivia de conversas com Malu. Malu, abandonada pelo marido, considerava as relações estáveis um engodo. Necessariamente, desconfiava de qualquer história de amor. E foi ela, quem começou a fazer brotar as dúvidas na mente frágil de Amanda.

Por que o marido voltava tarde demais? Por que o marido dava menos presentes do que no passado? Por que o marido insistia em não ter filhos? Por que o marido viajava?

Chegava do trabalho, Amanda, e a voz de Malu acendia nela os piores sentimentos. Chegava o marido e vinham as perguntas, as insinuações, as acusações. No início, pensou o marido que se tratava de uma crise. Deixou de lado. Amava a mulher. Insistiu que trabalhasse mais e que ouvisse menos as vozes maledicentes. Amanda irritou-se. Malu era sua melhor amiga. O marido foi ficando mais ausente. O amor, apenas, não resolve. Relações precisam de admiração, de confiança, de cumplicidade.

Malu começou a semear necessidades para Amanda. Precisava dar passos certos para garantir direitos em uma separação. Felipe confiava plenamente em sua mulher e jamais imaginou viver qualquer situação de desonestidades. Os dias, antes de Malu, eram lindos. As vozes, antes de Malu, eram de bondade.

Demorou Felipe para saber de onde vinham as tempestades. Até que um dia. Um dia de sol triste, ele resolveu partir. Partiu partido. Foram tantas as ameaças da mulher, foram tantos os ódios revelados, que ele sentiu não ser mais aquele o seu lugar.

Ao contrário do que Amanda imaginava, não havia outra mulher. Só não tolerava ele as teias que o aprisionavam. Vasculhou ela os seus compartimentos sagrados, impediu ela que ele sorrisse como outrora, quando se conheceram.

Malu era cuidadosa no dito maldito. Uma dúvida plantada aqui, um comentário estranho lá, uma ideia destrutiva solta. E despedia-se. Tinha que colocar o feijão no fogo. E Amanda, com seus cremes no rosto, não enxergava a beleza da sua inocência.

Infelizes são adversários valentes da felicidade. É preciso tomar cuidado. Uma voz que perturba é capaz de estragos incalculáveis.

A mãe de Amanda, que mora longe, chegou ontem. A filha, pouco havia dito sobre a separação. Resolveu contar tudo. Deu detalhes do que conseguiu guardar de provas para conseguir dinheiro do marido que partiu. Falou com os ódios que lhe faziam companhia.

A mãe ouviu cada pequeno pingo de incorreção. Olhou-a com um olhar muito diferente do de Malu. Falou baixinho. Sem pretensões de dominar a verdade. Lembrou dos tempos de amor. Dos dias felizes que viveram juntos. Das delicadezas. Do sensível exercício do cuidar.

A filha ouvia e chorava. No início, dizia frases como: “Vou acabar com ele”. Aos poucos, foi tornando serenos os sentimentos desarrumados.

A mãe buscara tirar os entulhos que cobriam a ética que ela plantara com tanto cuidado na educação da filha. Não. Ela não deveria fazer nada contra o marido que se foi.

Com euforia súbita, disse Amanda que o procuraria. Que voltaria com ele. Que seriam novamente felizes.

A mãe, com suavidade na voz, sugeriu que esperasse um pouco, um tempo de reconstrução. Era preciso aguardar a calmaria.

A filha deitou-se no colo da mãe e pediu que ela contasse alguma das histórias que, um dia, embalaram seus medos. Cena linda de amor.

Na casa ao lado, Malu, sozinha, via televisão. Com raiva.

Por: Gabriel Chalita (fonte: O Dia – RJ) | Data: 29/04/2018