Author page: Rafael Costa

BRIGA DE IRMÃO

“Eu disse que, além do doce, conhecemos o resto. E o resto também faz parte da vida. E o resto desvaloriza a vida.” 

 
Minha mãe tinha o talento de amaciar as conversas, e meu pai era um escultor de gentilezas. Dizem que são os opostos que se atraem, mas, em casa, eu via o contrário. Na docilidade dos que me trouxeram ao mundo, fui crescendo e conhecendo o doce e o resto. 
 
O doce estava, também, nas compotas que minha mãe fazia. Meu pai chegava em casa e comia com os olhos o prazer que ela havia preparado. E, depois, se alimentava de tudo. E, antes de se despedir do dia, tomava-a em seus braços para o principal alimento, o amor. 
 
Foi assim que meu irmão e eu passamos as etapas da vida. Até que, um dia, saímos de casa. Ele se casou primeiro. Depois, eu. Depois, meus pais se foram. Em menos de um mês, nos despedimos dos dois. 
No velório de minha mãe, meu pai se benzia com a serenidade dos que sabiam que o reencontro não seria demorado. 
 
Eu disse que, além do doce, conhecemos o resto. E o resto também faz parte da vida. E o resto desvaloriza a vida. 
 
Alguns anos se passaram depois da orfandade. Deixamos de ser filhos para sermos pais. E irmãos é o que seremos sempre. Até o dia da despedida. 
 
 
O resto azeda a vida. E foi assim, em uma tarde boba, em uma briga de futebol, em um dissenso, que nos olhamos enfurecidos e nos prometemos distância. Para sempre. 
 
Torcemos para times diferentes que, naquela tarde boba, jogavam. E a falta que houve ou não foi o motivo da falta que até hoje ele me faz. Não me lembro de quem gritou primeiro. Havia outras pessoas. Exaltamo-nos nas ofensas. E eu saí da casa dele trazendo meu filho comigo. Que me olhava em silêncio. Saí falando impropérios contra o tio. Justo eu que fitava com admiração a serenidade dos meus pais. 
 
Dias depois, eu já havia percebido a desnecessidade da separação. Esperei que meu irmão pensasse o mesmo e que me procurasse. Talvez ele também tenha esperado. Só vou saber hoje. Os dias chegam e partem como uma sinfonia perfeita. Nas pausas, nos desapercebemos do tempo. E o tempo traz acordes que nos acordam para continuar a canção. 
 
A canção sem meu irmão virou solo. Minha mulher ensaiou algum dizer e desistiu. Meu único irmão tão perto e tão longe. Cheguei a passar pela rua dele, próxima à minha, numerosas vezes, para que nos encontrássemos por acaso e para que tudo voltasse a ser como nos dias em que as compotas de doce de abóbora e de coco e de figo e de leite adoçavam nossa conversa na mesa da cozinha. 
 
Dizem que palavras convencem e que exemplos arrastam. Os exemplos dos nossos pais deveriam nos arrastar para o abraço. Quanta coisa cabe em um abraço! 
 
Ontem, quando um novo dia veio me despertar, fiz as contas. Cinco anos de ausência. Nesse tempo, eu o visitei apenas nas ideias, nos pensamentos. Enriqueci-me de tristezas. E tudo pelo amargor da soberba. Julgava eu que era ele quem deveria me procurar. E me pedir desculpas de uma briga que nem lembro como começou. 
 
Antes do dia de ontem, sonhei com os meus pais. Meu pai preparava um chá para aquecer o dia frio. Minha mãe soletrava dizeres com o prazer dos que sabem comer os cheiros. No sonho, eles estavam felizes. E, súbito, entrava meu irmão e sorria para mim. E foi assim que acordei e que contei o tempo. Foi assim que telefonei e foi assim que ele atendeu. Antes do medo do desprezo tomar conta de mim, ele disse que iria me ligar naquele dia. Que a saudade era tanta que era preciso me ver. 
 
Será que ele sonhou também o sonho bonito dos nossos pais? Quem nos acordou desse incômodo? 
 
E marcamos o encontro. Minha mulher ouviu o meu relato e, com algumas lágrimas, enfeitou o seu sentimento. Por que demorei tanto? 
Daqui a pouco vamos almoçar. Só nós dois. Nós dois e as lembranças do doce e do resto. E, depois, tudo voltará ao normal. Como deve ser. E, depois, eu quero sonhar de novo e, de novo, revisitar o quentume dos dias em que crescemos. 
 
Na casa dos meus pais, havia fogão a lenha. O fogo demorava para aquecer. Mas, aquecido, nos aquecia com aquelas brasas que brincavam de cantar barulhos. Meu irmão é o que me resta daquele tempo. E, depois do encontro, vou explicar ao meu filho que eu errei. E pedir desculpas por ter me esquecido de viver. 
 
Publicado no dia 11 de Agosto, no jornal O Dia (RJ). 

FORMATURA DO MEU FILHO

“As amizades escancaram os mais belos sentimentos. Leves. Profundos.” 

 
Chegou hoje o convite. Acabei de abrir. O papel, cuidadosamente escolhido, traz nomes e outros dizeres. 
 
Meus olhos olharam como quiseram. Sem obedecer a um roteiro. 
 
Os nomes foram saindo do papel e sentando ao meu lado. Um a um. 
 
As amizades escancaram os mais belos sentimentos. Leves. Profundos. 
 
Meu filho foi crescendo nos enroscos desses enlaces. O físico e o interno. Internaram-se eles na minha casa tantas vezes. Nos inícios, para brincar, para se alimentar do riso dos que ainda têm muito pela frente. Os jovens pouco falam da morte. O que veem é vida. É eternidade. Depois, continuaram a vir para cuidar de roubar sorrisos do Serginho. Ele foi um resistente, um bravo. Enfrentou as cirurgias. Comemorou as curas. Sorriu nas recaídas. 
 
O câncer foi comendo seu corpo jovem. Se eu pudesse, entregaria o meu para deixar que ele prosseguisse. Nos últimos dias, falava pouco. Seus olhos percorriam cada veia da minha dor. Eu sei disso. E, aí, vinha o pouco de palavra : “Mãe, eu estou bem, eu vou ficar bem”. E adormecia aquecido na fé. 
 
 
Eu sei que ele está comigo olhando o convite. Seu nome está em lugar de destaque. Corro novamente os olhos. E choro o choro legítimo da mãe que se vê obrigada a enterrar o seu filho, 
 
Tenho outros dois. Mais velhos. O Serginho era o caçula. Faz só três meses. Ainda não tive forças para arrumar tudo. Arrumei nada. Nem dentro de mim. 
 
Sou forte para os outros, talvez, por uma necessidade de não partilhar tanto a minha dor. Quem gerou fui eu. Quem enterrou também fui eu. 
 
Meu marido chora nos cantos para que eu não perceba. Tenta ser forte. Nem toda força do mundo seria capaz de resolver. Sei que não somos melhores do que ninguém. Tantas famílias se ajoelham diante da mesma dor. 
 
Mas meu filho não estará na formatura. Ele sonhava ser engenheiro. 
Quisera eu ter o poder da engenharia do mundo e quisera eu consertar as doenças que maltratam tantas histórias. Não sei se vou à formatura. Eles querem que eu receba flores. Que eu diga algumas palavras. Me chamam de tia. 
 
As flores no meu filho apenas acentuaram sua beleza. Foi embora sorrindo. Foi triste. É lindo ver os amigos cantando na despedida. 
Sinto todos eles comigo. Mas não há mais abraços, nem dedos se encontrando na brincadeira de embaralhar os cabelos. 
 
Serginho gostava que eu fingisse procurar alegria em sua cabeça, enquanto ele descansava sua pouca idade em meu colo. Depois, pegava o violão e tocava para mim. Seus dedos iam dizendo, em notas, o significado do nosso cordão. E ele cantava. E me fazia cantar com ele. E, assim, o dia se despedia e íamos dormir sabendo que, no outro dia, estaríamos juntos. 
 
Justa a vida não é. Não vou disfarçar e dizer que está tudo bem. 
Mas quem sabe ele tenha sido inspirado por algo maior quando me disse: “Mãe, eu estou bem, eu vou ficar bem”. 
 
Nos dias que ainda me restam, não quero viver de lamúrias, mas hoje quero chorar sem pressa. Olhar esse convite quantas vezes quiser. Ficar no esconderijo de mim mesma, visitando os dias em que estavam todos aqui. 
 
Publicado no dia 04 de agosto, no jornal O Dia (RJ). 

O SORRISO DA SOLIDÃO

“O meu silêncio o incomoda. Mas, se eu falar, impulsiva que sou, será pior.” 

 
Mirtes é afeita aos temas da alma. Não teve a oportunidade de estudar, mas teve a de sofrer. E, de sofrimento em sofrimento, foi se fazendo conhecedora das feridas e dos jeitos de se seguir em frente. 
 
De ferimentos, também entendo, mas não de seguir em frente. Primeiro, porque tenho dificuldade em rasgar o que me vincula. E, depois, porque fico esperando que alguma coisa aconteça para que o que venha seja melhor. 
 
Meu marido é ríspido. Sempre foi assim. Minha mãe, desconfiada dos presentes adiantados, quis que eu pensasse melhor. Nunca fui de pensar muito. Mirtes diz que sou impulsiva. O fato é que me casei. E que, desde os inícios, ele me trata com destrato. 
 
Acordo com receio. O dia pode ser bom ou pode ser como geralmente é. Meço a temperatura do seu humor pelos ditos iniciais. Sou sempre a errada. O pão nunca está aquecido corretamente. O cheiro do café comprova que está fraco. Eu engordei. Fala aos outros que me trocaria por duas mais jovens e mais magras. E eu digo nada. Ele ri de boca aberta das coisas que diz e, se não rio, se zanga. Então, eu rio o riso triste dos que têm medo de partir. 
 
Os seus afagos são raros. Apenas, quando me quer. E, quando resolve, reclama que não falo. O meu silêncio o incomoda. Mas, se eu falar, impulsiva que sou, será pior. 
 
Mirtes diz que estou errada. Que ainda morro de alguma doença provocada pela dor. Que Deus me perdoe, mas eu rezo para que, um dia, eu acorde, e ele tenha morrido. Aí, sim. Tudo estaria resolvido. 
 
Se ele viaja, penso em algum acidente. Acidentes acontecem. Não seria nada de extraordinário. Já fingi doença muitas vezes. Nesses dias, ele declina de maldizeres e oferece algum cuidado. Mas tenho medo das desconfianças. Um dia, chamou um médico e ficaram sussurrando hipóteses. Temi pelo retorno. Dormiu sem cerimônia. E roncou como de costume. 
 
Quando ele viaja, durmo a paz dos livres. Enfeito-me de desejos. E abraço a noite feliz. Não tivemos filhos. Fiz, a seu mando, todos os exames. Ele credita a mim a infertilidade. Eu credito a ele a infelicidade. 
 
Mirtes diz que estamos errados. Os dois. E quem tem coragem para corrigir erros? Vai que a vida resolve? Ele não gosta de Mirtes. Ela sugeriu que ele fizesse exames para ver se haveria algum tratamento. Ele sorveu o ódio, balançou o silêncio e descontou em mim. Jamais admitiria ser infértil. 
 
Os erros são meus. Todos. Sempre. 
 
Não faz muito tempo que me trouxeram a notícia de uma suposta amante. Ri por dentro. Pensei nos seus dizeres, despedindo-se de mim e partindo para uma outra história. Ensaiei o que diria. Teria que, primeiro, me fazer de sofrida, chorar um pouco talvez, lamentar que tudo tenha terminado. E, depois das roupas saídas, usaria meu mais lindo vestir e experimentaria a cor da liberdade. 
 
A cada noite que ele chegava, aguardava a notícia. Por enquanto, nada. Só o mesmo queixume, o mesmo permanecer me negando a mim mesma. 
 
Queria ser como a Mirtes. Com a coragem de sorrir o sorriso da solidão. 
 
Publicado no domingo, dia 28 de julho, no jornal O Dia (RJ). 

MORREU UM POETA

“Eu o conheci dizendo temas que abriam espaços e que deixavam ver o que, sem ele, seria difícil. Em sua fala, cabiam todas as belezas do mundo. “ 

 
Morreu um poeta. Um poeta que viveu derrubando os estreitamentos da vida. Um poeta amigo meu. 
 
Eu o conheci dizendo temas que abriam espaços e que deixavam ver o que, sem ele, seria difícil. Em sua fala, cabiam todas as belezas do mundo. 
 
O poeta ria o riso elegante. Ouvia os nossos dizeres como quem ouve uma canção bonita. Sentava em uma poltrona de saudades e ia destecendo as histórias que, nas gentes e nos livros, serviram para aquecê-lo. 
 
Era altivo e elegante. Conhecedor da alma da mulher, fez poemas inspirados e inspiradores. Eu o conheci em uma tarde de um dia feliz. Foi me dizendo histórias. Foi me ouvindo sem pressa. E foi assim que nos demos as mãos. Eu e o príncipe dos poetas. Eu e o Paulo da São Paulo que ele tanto amou. Eu e o brasileiro cheio de certezas de um dia bom que pedia autorização para chegar. Eu e o autorizador de afetos. E demos as mãos para nunca mais soltar. Nem agora quando ele já não mais está. 
 
Abro um livro com sua dedicatória e soletro letras que me dizem muito, que me dizem tudo. Era ele um entusiasta das qualidades humanas. Nada de observações menores, nada de lamúrias sobre o que falta. Paulo Bomfim era um homem de celebrações. Celebra a eternidade a sua chegada. É sempre assim, quando morre um poeta. Basta ter olhos de ver os luares. Não são iguais aos de todo dia. Tem um sopro que atinge quem não tem medo do amor. De qualquer amor. Basta abrir a janela, quando um sol se põe a fazer anúncios. 
 
Anunciava ele que era preciso, a cada um, encontrar um tema para viver. Sem um tema, quem somos nós? Empurradores do tempo? Aguardadores do fim? Viver é transgredir. É dizer às convenções que só permaneçam se se explicarem. Obedecer aos que se acham mandadores do destino não cabe na alma de um poeta. Destino, escrevemos nós, com as tintas que tivermos, com a caligrafia que conseguirmos, com sangue e amor. 
 
Queria eu que ele ficasse para celebrar mais alguns aniversários. Ele gostava de ir. E gostava de sair. O poeta era inquieto. Só se acalmava para receber amor. E para distribuir amor. 
 
É assim que o vejo. É assim que o convido a permanecer em mim. Lendo os seus dizeres. Guardando os nossos sagrados encontros. 
As cenas de trocas de olhares entre ele e Lygia, a escritora, me faziam compreender a palavra cumplicidade. Em quase cem anos. 
 
Ah, tempo caprichoso. Tudo passou tão rápido. O quarto do poeta já não guarda mais o seu corpo. A velha cama teve que se despedir dos seus cansaços. A torneira, de onde a água pedia autorização para banhar o corpo do poeta, também está silenciosa. 
 
Seus velhos amigos se debruçam na palavra ‘saudade’. E, do alto, ele nos sorri delicadezas explicando, do seu jeito, que foi preciso partir para viver, finalmente, a pura poesia, sem necessidades nem obrigações. A poesia da alma, da alma livre, que se corporifica nas memórias dos que continuam a tentar viver o amor, 
 
Obrigado, poeta. 
 
Publicado no domingo, dia 21 de julho, no jornal O Dia (RJ). 

MINHAS DUAS MÃES

“Já doeu, algumas vezes, pensar que ela criou os outros três filhos. Não faz tempo que sei dessa história. Sabia que era adotado. E adorado.” 

 
Os relógios são muito intrigantes. Quando querem, se lançam sem ninguém para segurá-los. Não é o caso agora. Eles estão tímidos. Brincando de demorar. 
 
O dia de amanhã está aguardando o dia de hoje ir embora. Para que venha, enfim. Amanhã, vamos para o interior. Minha mãe e eu. Vamos encontrar a minha mãe. A que me gerou. A que me doou. 
 
Já doeu, algumas vezes, pensar que ela criou os outros três filhos. Não faz tempo que sei dessa história. Sabia que era adotado. E adorado. 
 
Minha mãe sempre soube permanecer nos meus vazios. E sempre se esmerou em me fazer compreender que era eu quem devia preenchê-los. A tristeza já me acordou muitas vezes. Hoje, nos fazemos companhia. 
 
Minha mãe me adotou por decisão de vida. Ela quis ser minha mãe. Ela me gerou em seus sentimentos, me gerou em seus sonhos de generosidade. E o tempo foi nos costurando. Somos mãe e filho. Sei disso e disso jamais duvidei. 
 
Soube ela que a mãe que me gerou está de partida. Um irmão meu a encontrou. E conversaram sobre despedidas. Doente, ela sabe do amanhã. Vamos nos ver depois de trinta anos. 
 
Quando minha mãe foi descosturando seus dizeres, eu logo entendi. Por alguns instantes, tive dúvidas . Por que só agora? Por que não convivemos antes? Por que não pode remos conviver por muitos depois? O que ela quer me dizer? Pedidos de desculpas serão desnecessários. Aprendi a não cobrar explicações. As narrativas são tantas. Quem sabe o que acontece quando algo não acontece? Eu fui o primeiro filho que ela teve. Meu pai não quis ser meu pai. Nem pai de ninguém, pelo que me disseram há pouco. E ela deve ter chorado o desfecho. Certamente. Não sei se saberei os atos e os entreatos. Se compreenderei os ditos e os silêncios. Não sei se se trata de compreender ou de sentir. Houve um outro homem e aí vieram os outros filhos. Então, se já estava normalizado, por que só agora essa procura? Não. Nada de julgamentos. 
 
Choramos juntos, minh a mãe e eu. Decidimos juntos conhecer o ontem. Que sentimentos ela teria tido qu ando soube que eu estava dentro dela? Que dúvidas teve? Houve vozes que aconselharam a desistir? Vozes que se incumbiram de desencorajar a procura? Vozes e mais vozes nos fundem ou nos confundem. Difícil distinguir. 
 
O vento lá f ora assobia frio. Olho o anoitecer e penso nas despedidas. Um dia se despede. Um dia, ela se despediu de mim. Um dia, ela vai se despedir daqui. E também eu. E, antes disso, nos encontraremos e nos despediremos. Ou nos encontraremos outras vezes. Não sei dizer. 
 
A noite está chegando. O escurecer vai dando calmaria ao dia. Não à minha alma. Estou eufórico e temeroso. Queria ter a reação correta. Nada de julgamentos. Queria olhar nos olhos dela e dizer que continuo seu filho. Que ela tenha paz. Queria não chorar. Ou talvez fosse melhorar chorar, não sei. Não chorar pode parecer pouca atenção ao encontro. Pouco derramar de sentimentos. 
 
Minha mãe vai comigo. Também ela deve ter suas questões. Nunca se conheceram. E estão unidas por uma vida. A minha vida. Toda vida importa. Um sopro e estamos aqui preenchendo com o nosso jeito o universo. Um sopro e partimos. 
 
O vento já não se deixa ouvir. O relógio continua caprichoso. Lento como não se deve em dias como os de hoje. E eu não durmo. 
 
Não quis ver a foto de minha mãe. Não fará diferença. É minha mãe. São minhas duas mães. Cada uma com suas cicatrizes. Cada uma me gerando em um lugar seu, muito seu. Cada uma querendo, no seu tempo, me encontrar. 
 
Amanhã, espero que o dia não seja implicante comigo e não compense a lentidão de hoje. Que seja tudo muito demorado. E que possamos colocar, nos instantes que tivermos, todos os outros tempos que já se foram. 
 
Publicado no dia 14 de julho, no jornal O Dia (RJ). 

Sobre meu filho

Ele foi chegando como quem chega sabendo o quer. E foi dizendo dizeres que se atropelavam de tanta alegria. Eu desconfio da alegria. Sou precavido. Mas amo meu filho com a determinação de vasculhar em mim qualquer sentimento que, por ventura, esteja faltando. No silêncio do mundo, me aquietei para contemplar aqueles olhos pidonchos. 

E lá vem a descrição de algum paraíso da natureza. De onde o sol se comove com os que o abraçam e fica até quando o dia avisa que tem que partir. Falou das águas e dos seus banhos. Do ir e vir de seus sons. De pássaros que rasgam os céus explicando para onde se deve olhar. E disse dos amigos que já emaranhavam desejos com planejamentos. 

“Eu quero ir, pai. Todo mundo da minha classe vai”. 
Parei. Pensei. E disse nada. 

Ele insistiu. Eu insisti comigo para ver onde arrumaria dinheiro antes de qualquer resposta. 
Ele voltou ao que havia dito com ainda mais expressão, 
Como dizer “não” a um filho tão bom? 
Como dizer “sim”, se não há de onde fazer brotar os recursos? 

Meu filho estuda em uma escola de endinheirados. Tem bolsa. Jamais poderia pagar. Faço o que nem posso para que ele festeje o conhecimento. O seu nascer já foi um milagre. A mãe era doente. Mas Deus decidiu nos presentear com um dos enfeites que Ele esparrama pelo mundo a cada criança que nasce. Ele veio, e a mãe, depois de poucos meses, se foi. Jovem se foi a mulher que tanto amei. 

Não tenho outros filhos. Não tive o estudo necessário para decidir por mim mesmo. Dependo dos trabalhos que andam escassos. Sei bem o que é sair todo dia em busca de algo melhor. Sei bem o que é chegar em casa e ouvir as perguntas, da minha mãe e do meu filho, se deu certo a entrevista de emprego. Não deu. O que me falta eu tenho. Mas eles não veem. Choro sozinho no invisível do quarto. 

Ouço, daqui e dali, que quem quer melhora de vida. Eu quero. E não sou dos que espanam a esperança. Vou adiante. 

Recentemente, arrumei uma colocação em uma construtora. Ergo paredes e imagino histórias. Gosto do que faço, mas não ganho para excursões em paraísos. Comida não nos falta. Nem o básico de um crescer na simplicidade. 

Os que estudam onde meu filho estuda têm o excesso. Nem sei se é bom. Dou um ou dois presentes para o Lucas, meu filho, por ano. É o que consigo. No mais, conto histórias e brinco com ele de enfeitar o mundo de bondades. E ele foi aprendendo a não exigir mais. E a sorrir com nossas pequenas incursões. Os passeios são no parque, na praça, no campo de futebol, na casa da minha tia, na quermesse. E é isso. Mas a escola resolveu viajar. Posso fazer um empréstimo, talvez? Mas é certo? O certo é dizer a verdade. Dizer o que ele sabe, que somos pobres, que plantamos para um dia colher. Que cultivamos os mais lindos sentimentos, que vivem onde estamos. Não precisamos de paraíso e temos o sol por aqui também, mesmo que parta mais cedo. E também água, mesmo que não sejam banhos perfeitos. E também pássaros que voam e nos fazem olhar para o alto. 

Vou escolher o jeito de dizer. Vou olhar para dentro dele e buscar aceitação. Ficaremos por aqui, no quintal das nossas precariedades, com um pomar cheio de presenças. Há muitos que resolvem as ausências com presentes. Prefiro estar perto. Sempre. Contando quanto falta para o plantio florescer. Arrancando as pragas que aparecem e celebrando a estação das chuvas. E rindo das histórias engraçadas das gentes que moram por aqui. Nós dois gostamos de observar. É um jeito amoroso de saber que cada um tem o seu quinhão de presença no mundo. 

No dia em que eu for me encontrar com a mãe dele, histórias de mãos juntas não faltarão. 

As lembranças moram nos sentimentos, não nas coisas. Encoste a sua cabeça no meu ombro, meu filho. Vou te contar uma história… 

 
Publicado no dia 07 de julho, no jornal O Dia (RJ). 

Em uma festa de São João

Vim do Nordeste. Vim das festas em que mesmo os que padeciam de comum tristeza sorriam. Foi assim com minha mãe e minha madrinha. Ambas viúvas. Ambas dançando a alegria em uma festa de São João. 

Se eu soubesse, não teria ido. Se eu soubesse, teria feito nada no dia de São João. 

Vim do Nordeste. Vim das festas em que mesmo os que padeciam de comum tristeza sorriam. Foi assim com minha mãe e minha madrinha. Ambas viúvas. Ambas dançando a alegria em uma festa de São João. 

Os tempos são outros. Cansei de ficar em casa. Embotada. Varrendo sem parar como se tivesse o poder de varrer toda a tristeza do mundo. Jânio me deixou. Sem muitos dizeres, porque ele nunca foi amigo das palavras. Encontrou outra. Quando ele anunciou a partida, partida ouvi. Não chorei na hora. Decidi que choraria em segredo, depois. 

Ainda amo Jânio. Amo-o com todas as forças que nem tenho. Nunca imaginei minha vida sem ele. Eu o chamava de “meu pequeno”, e é ele um homem enorme. Eu olhava para o futuro, e ele morava comigo em todos os anos que ainda viriam. Mas o fato é que ele conheceu Janaína. Mais jovem do que eu. Mais bela, talvez. Não sei dizer. Não quero me diminuir ainda mais. 

Nunca mais o vi desde que ele se foi. E foi justamente na festa de São João. Ele e ela. Os fogos pularam do centro da terra e queimaram alguma coisa em mim. Não havia como disfarçar. Os dois me olharam. E eu já não me via. Sorri desajeitada. Os acenos foram rápidos. A dor, não. 

Quis ir embora. Quis pedir ao tempo que fizesse alguma coisa. Estava farta da lentidão dos dias. Farta de ouvir dos meus amigos que o tempo cura a dor. Quanto tempo ainda vai demorar? Já faz um ano que ele se foi. O “meu pequeno”. Como será que Janaína o chama? 

Ele me chamava de “princesinha do norte” e eu gostava. Nem do norte eu sou, mas eu gostava. Janaína é do Rio. Será que ele a chama de “princesa do rio”? 

O que me importa? Deveria ter sido um dia de alívios. Depois de Jânio, eu havia decidido que não mais usaria o coração para o amor. Que seria apenas para a alegria. E é de alegria que é desenhada a festa de São João. Os doces, as músicas, as brincadeiras, o frio. Nem o inverno quis vir este ano. O calor que eu sentia, depois de ter visto o que não deveria, atrapalhou minha compreensão. 

Fui tonta para casa. Disse nada a ninguém. Havia acabado de chegar. Jânio viveu seis anos comigo. Passou tão rápido. Diferente de hoje que a noite não desiste de continuar. Quero que o sono chegue logo para que eu mude logo para o dia seguinte. E para o outro. E para o outro. Até chegar o dia do esquecimento. O dia em que eu abra a janela e veja sem pensar. O pensamento é que me consome a alegria. 

Quando eu era criança, sonhava com casamento. Sonhava com uma família cheia de crianças me chamando de mãe. Hoje, eu sonho com uma noite sem sonho. Porque, se sonho, ainda é com ele. Parei de esperar pela sua volta. Parei de desejar que se desentendessem. 

Minha mãe e minha madrinha perderam os seus amores. Mas para a morte. É diferente. O luto é outro. O meu está vivo e está dizendo o que antes dizia para mim para outra mulher. E a outra mulher está ainda mais viva porque pode ouvir o que antes eu ouvia. 

Sei que eu deveria agradecer o tempo do amor e prosseguir. E encontrar outro amor. É assim com tanta gente. Ainda não consigo. Ainda não sinto o perfume impossível das flores que brotam em minha janela. Por isso tanta gente tem medo de amar. O fim é muito doído. Passei dias esquecendo de sorrir. Melhorei há pouco. E, justo agora, na festa que lembra os meus sonhos, eu o vejo e ele não me vê. Eu, para ele, sou o ontem. Ou nem isso. Ele, para mim, é o sempre. Não. Vai passar. Eu sei. Um dia, cicatriza. E aí eu vou dançar de novo a quadrilha dos que amam a vida. 

Ué! Quem está batendo na porta a essas horas? 

Publicado no dia 30 de junho de 2019, no jornal O Dia (RJ). 

CONSERTADOR DE DESTINOS

“Leo leva o nome do tio que se foi sem quase ter chegado. Quem decide isso? Tem dia de morrer? Ou os atropelamentos antecipam a partida? Sou engenheiro de profissão. Gosto de consertar. Se eu pudesse, seria consertador de destinos.”  

Meu filho caiu. Crianças caem com alguma frequência. E choram. E se levantam. E se esquecem da queda. E riem. E algazarram o dia. Mas a queda foi maior e mais dolorida do que as quedas da rotina. Sua expressão de dor doeu em mim. Seu choro calou forte em mim. Dirão alguns que é por ser meu primeiro filho. Meu único filho. Dirão que eu exagero nos cuidados que organizo. Não importa. O que import a é que o bracinho sem movimento, o olhar buscando alívio, o choro incontinente exigiam de mim ação. 
 
Fui com ele ao hospital. Um braço quebrado e nada mais. Nada que não possa ser consertado. Pessoas gentis espantaram a minha aflição. Dá gosto ver médico que gosta de ser médico, enfermeiro que gosta de ser enfermeiro. Dá gosto ver gente que gosta de ser gente e que gosta de gente. Nos tumultos do hospital, encontrei alívio. 
 
Leo, meu filho, tem apenas 2 anos. Minha mulher viajou a trabalho. Estávamos apenas nós dois, quando ele caiu. Meus pais moram longe. 
 
Enquanto Leo chorava, um futuro passou por mim. Não sei por que fiquei imaginando os crescimentos necessários, as despedidas, as quedas de corpo e de alma, as cicatrizes. Ser pai é um ato de coragem. Há muitos amigos que resolveram não ter filhos. Por medo, talvez. Por apreensão com o amanhã. Mara e eu planejamos 3 filhos. Há ainda 2 para chegar. Sou filho único, aliás, deveríamos ser 2. Meu irmão morreu aos 2 anos. Atropelado. O dia se ajoelhou junto com os meus pais e chorou. Não foi justo. Não é justo. Se meu irmão ainda estivesse vivo,… 
 
Leo leva o nome do tio que se foi sem quase ter chegado. Quem decide isso? Tem dia de morrer? Ou os atropelamentos antecipam a partida? Sou engenheiro de profissão. Gosto de consertar. Se eu pudesse, seria consertador de destinos. 
 
Minha mulher diz que eu sofro muito com o sofrimento dos outros. Conheci o sofrimento e dele me tornei amigo, quando ainda nem entendia das amizades. O choro da minha mãe antecipava a chegada do dia. Foram anos de desconsolo. Meu pai espantava a dor para ser o seu apoio. História linda a dos dois. O tempo foi nos convencendo a prosseguir. E a saudade se colocou no lugar do desespero. 
 
Quando meu filho nasceu, minha mãe brincou com a noite. E brindou a vida de um jeito tão delicado. Quando soube do nome do meu filho, me deu o abraço dos agradecidos. Partidas e chegadas. Foi dizendo que demorou a compreender que a morte não era mais forte do que o amor, que o seu filho prosseguiria com ela para sempre. Olhou ao longe e depois voltou. E rimos do que ainda iríamos viver. 
 
Demorei a falar sobre o atropelamento, porque eu estava junto. Ele me seguiu. Eu, dois anos mais velho. Quando vi, não vi mais. Só o barulho e o silêncio. 
 
Meu filho silenciou do choro. E dorme com um bracinho inerte e outro me tocando o peito. A confiança ilumina a vida. Observo o seu sono e imagino o seu sonho. Com o que sonham as crianças? Os pensamentos da noite se escondem de mim. É o sono chegando. É o respirar em paz do meu filho que me convida a desligar o dia. Tudo está bem. Tudo acaba ficando bem, quando compreendemos. O tempo é um bom professor. A memória nos cumula de aprendizados, de lembranças que embalam o futuro. Aprendemos com o ontem para acender o amanhã. 
 
Amanhã, meu filho vai acordar bem. Vai reclamar do braço imobilizado, vai chorar algum choro e vai querer brincar comigo. 
 
Amanhã, minha mulher volta de viagem. Gosto da saudade. A despedida incomoda, mas a chegada compensa. 
 
Amanhã, vou pensar melhor nesta história, consertador de destinos. E vou fazer o que é possível dentro da engenharia da vida. Boa noite. 
 
Publicado no dia 23 de junho de 2019, no jornal O Dia (RJ). 

No caos, paz

Já me cobrei por ausências, já me ausentei de mim mesma querendo fazer parte. A parte que me cabe nem sempre é compreendida. Por isso gosto de música. Porque me conduz a um espaço de paz. No caos, existe paz. No barulho, encontro silêncio em mim. 

Eu havia acabado de sair da fisioterapia. Angélica pediu que eu contasse tudo, queria me conhecer melhor, queria que eu falasse da dor, do cansaço, da minha história. 
Olhei para ela e ensaiei um resumo. Que não fosse ríspido, mas que não se estendesse além do meu desejo de guardar segredos. 

Tenho 80 anos, me chamo Vitória. Tenho rugas. Tenho dores. Tenho incômodos. Minha história é um sopro, ora quente, ora suavizante. 

Tenho família, naturalmente. Alguns já se foram. Os que permanecem têm os seus cansaços. O tempo foi me dando lições. Já não tenho o vigor de esculpir pessoas. E, quando tinha, não consegui. Meu pai dizia uma frase que demorou anos para encontrar aconchego em mim: “Ninguém muda ninguém”. Ou aceitamos as pessoas como elas são, ou mudamos de calçada. 

Meus filhos gostam das cobranças. Há uma ânsia por saber quem é o mais amado. Sigo brincando em não me enraizar em perguntas sem importância. Já me cobrei por ausências, já me ausentei de mim mesma querendo fazer parte. A parte que me cabe nem sempre é compreendida. Por isso gosto de música. Porque me conduz a um espaço de paz. No caos, existe paz. No barulho, encontro silêncio em mim. 

Angélica, a fisioterapeuta, prosseguia movimentando minhas mãos. Olho para as minhas mãos e já não consigo compreender. Estão tão diferentes. A juventude é uma dança curta. Traz medo, traz emoção, traz promessas. E acaba. Minhas mãos envelhecidas. 

Digo o que consigo e agradeço. Saio da clínica e respiro o ar de um dia frio com sol. Um dia bonito. Na calçada, dou meus passos sem pressa. Sempre gostei de caminhar. 

Súbito, um atropelamento. Uma queda. Uma escuridão. Abro os olhos e vejo um jovem que me vê com amor. Nada mais belo que o belo sentimento do cuidar. Sinto sua preocupação. Tudo calmo. Chegam os que me levam a um hospital. Ele vai junto. Segura, com sua firme mão, minhas mãos despreocupadas. Deitada, eu o vejo e me vejo. Ele fala dos meus olhos azuis e eu nada digo. 

O tombo não trouxe maiores consequências. Meus filhos não demoraram a chegar. São amorosos. Afoitos, mas amorosos. E, como disse, “Ninguém muda ninguém”. É o que eu tenho. 

Túlio, o jovem que me resgatou do atropelamento, não teve um dia fácil. Dias fáceis são raridade. Quem controla as nuvens? Fiz o convite, e ele, timidamente, aceitou. Quero todos na minha casa. Sou uma mulher de silêncios, mas também de celebrações. Gosto das histórias que leio nos livros, meus companheiros, e das histórias que leio nas pessoas, meus acompanhantes de jornada. E gosto de festa. Carpe diem. 

O dia vai se despedindo. Não pensem que eu desejo algo de Túlio que ele não queira me dar. Quero apenas aquele olhar que me olhou com compaixão. E que deixou de lado o que era essencial para me fazer essencial naquele instante. Sou uma mulher que valoriza os instantes. E que valoriza os que moram nos instantes. Moramos juntos naquela rua, naquela queda, naquele reerguer. Por que, então, prosseguirmos agora de mãos separadas? As minhas mãos velhas escondem histórias que não revelei a Angélica. As mãos apressadas de Túlio me aquecem nesse dia frio. Há sol. 

Meus filhos exercem a profissão de disputar quem fala mais. Ouço os planos de me levarem a vários médicos. Discordam dessa ou daquela opinião. Já Túlio parece perscrutar minha alma. Almas não envelhecem. Enternecem. 

O tempo levou muito de mim, mas me deu de presente a sabedoria. Ou a loucura, não sei. Sei que estou em paz. 

Publicado no dia 16 de junho, no jornal O Dia (RJ). 

Paz no caos

Não sei o que vai acontecer depois. Só sei que não consigo. Sou um homem de paz. Mas ainda não aprendi a ter paz no caos. 

Eu acordei bem. Tenho certeza disso. Acordei e fui viver. Não que não se viva dormindo. Uma noite de sono, sem intranquilidades, é um perfume na alma. Que deixa um cheiro bom no desenrolar do dia. 

Acordei e percebi que não havia pagado uma conta que me olhava da cabeceira. Esquecimentos que antes eu não tinha. E justo agora que tudo está tão contado. Faço os cálculos da multa e dos juros. Tenho uma raiva leve. Olho para os desatinos do celular. Algumas mensagens vão se avolumando. Começo a tentar desfazer o novelo. Um amigo pergunta se já acordei. Não respondo. Estou preocupado com outra mensagem que me cobra uma resposta que ainda não tenho. O amigo insiste e diz que está vendo que estou online. Eu tento não me aborrecer e sigo no que faço ou no que deixei de fazer. Outro esquecimento. 

O amigo me liga. Atendo e explico que estou preocupado com uma mensagem e que, em pouco tempo, retorno. Tempo é o que me falta. Ele diz compreender e fala compulsivamente para explicar que aguarda o meu retorno. Tento desligar algumas vezes, mas ele prossegue em sua ânsia interminável de dizer. 

Olho o horário e me vejo atrasado. O banho terá que ser rápido. Não consigo responder nada. Visto a roupa que consigo e parto cheio de cobranças. Resolvo ir caminhando e lendo e respondendo as mensagens. Súbito, um furto. Alguém de bicicleta piora o meu dia. E lá se vai o meu celular. Estava na segunda prestação de 12. E lá vou eu buscar ajuda para bloquear o celular. E o atraso aumenta. E meu chefe não é dos mais compreensivos. 

Vou à loja da operadora. Fila. Explico a mesma história várias vezes. Perco a manhã. Compro o mais básico dos celulares. As mensagens não respondidas não estão chegando. Ué, estava tudo nas nuvens. Quisera eu estar nas nuvens dormindo um sono sem solavancos. No celular novo, o amigo da manhã me liga e diz alguns impropérios, porque eu havia dito que ligaria logo em seguida. Resolvo nada explicar e desligar o telefone. Meu chefe me olha. Eu não me olho. A frase que ele consegue dizer é: “Preciso dizer mais alguma coisa?”. E eu olho ao longe, exaurido. O telefone toca. Ele acena com a cabeça querendo que eu me lembre de que ele tem pavor de toques de celular. Que é preciso deixar no silencioso. 

Preciso de silêncio. No celular, o número da minha mãe. Saio de perto dele e atendo. E ela me cobra. No dia anterior, foi aniversário de um tio e eu me esqueci. E ela me pede um favor. Minha mãe demora a concluir uma narrativa. Me perco em outros pensamentos. E, desatento, digo que já ligo. Liga, novamente, o amigo. Não atendo. 

Na minha mesa, os papéis se engalfinham. Prometi à minha namorada que sairia mais cedo. Como? Se eu ligar para contar tudo, o tudo que tenho para fazer não será feito. 
Sento diante do meu computador. Tento me concentrar. O computador trava. Peço para que alguém da manutenção me ajude. Não há ninguém. Foram fazer um curso. O curso do dia está indigesto. Nada comi e, mesmo assim, não paro de ir ao banheiro. Uma certa tontura me atormenta. Não posso nem pensar em ir para casa. 

Mensagem da minha namorada, ligação da minha mãe, mensagem do meu amigo aborrecido. Resolvo não ler nada. Resolvo fechar os olhos para respirar sem incômodos. “Está dormindo?”, é a voz do meu chefe. Apenas abro os olhos. Olho para ele. Abro a gaveta. Pego a chave de casa. E parto. 

Não sei o que vai acontecer depois. Só sei que não consigo. Sou um homem de paz. Mas ainda não aprendi a ter paz no caos. 

Na rua, um atropelamento. Uma senhora caída. Tudo em mim se transforma. Eu me transformo e saio em seu socorro. Paro o trânsito. Ligo para o resgate. Acaricio sua face. Impeço que ela se mova. Converso com ela. Devolvo a paz que algum apressado dela retirou. E nos tornamos cúmplices em sorrisos. Os seus olhinhos azuis me trazem o céu limpo em um dia tão sombrio. Suas rugas me despertam respeito. Quanta história há por ali. 

Vou junto com o resgate até o hospital. Esqueço o resto e fico feliz em poder cuidar. O telefone vibra no meu bolso sem descanso. E eu já não me importo. Depois eu vejo. Quando os filhos chegam, ela me agradece com os olhos marejados. Dona Vitória é o seu nome. Ela pede que eu fique um pouco mais. E que a acompanhe em sua casa. Quer me agradecer de alguma maneira. Mal sabe ela o bem que me fez. 

Já ouviram falar em dores que ganham asas e voam pra longe? A experiência do cuidar é reveladora. Com a compaixão, a paz. 

Publicado no dia 09 de junho, no jornal O Dia (RJ).