Author page: Rafael Costa

O FIO DO AMOR

“ Minha avó gastava parte do dia com as agulhas e o fio de novelo preparando calor. Com seu tricô, viajava nas imaginações e nos fazia blusas, cachecóis, mantas, gorros e o que julgasse necessário para espantar o frio. E fazia com o prazer consciente de quem já sabia que a vida não dá tréguas e que é a coragem que nos faz compreender que aquecer os outros é nosso melhor propósito. 

 
Minha avó gastava parte do dia com as agulhas e o fio de novelo preparando calor. Com seu tricô, viajava nas imaginações e nos fazia blusas, cachecóis, mantas, gorros e o que julgasse necessário para espantar o frio. E fazia com o prazer consciente de quem já sabia que a vida não dá tréguas e que é a coragem que nos faz compreender que aquecer os outros é nosso melhor propósito. 

 
Sofreu ela de partidas dolorosas. Deixou suas infâncias e teve que ser adulta. Deixou sua terra e descobriu a saudade. E foi vivendo. Falou muda, não poucas vezes. Chorou para dentro, para não se manifestar. Mas resistiu. Essas histórias, eu soube em seu colo. Eu insistia em ouvir novamente. Queria detalhes da longa viagem no navio. Queria saber quem acenou no porto da partida. Até o tempo do choro me interessava. E ela contava com vagar. Depois, eu ia para a escola e ela voltava à sua tessitura. 

 
Houve um dia em que ela olhou, com alguma divagação, uma blusa que estava quase pronta. Olhou e não aprovou. E foi desfazendo com um fio que ia formando um novelo disposto a receber tudo o que já havia sido investido no que traria calor. Para, depois, começar novamente. Sem receios dos erros de ontem. 

 
Ainda ontem, um amor se foi. E, novamente, meu coração engasgou. Vivemos juntos o tempo das cobertas. Parecíamos prontos para permanecer. Tentei arrumar uns pequenos buracos que sentia no que nos cobria e ele disse nada. Apenas se foi. Tentei um aceno como aqueles que os irmãos da minha avó fizeram no porto da despedida. Ele disse outras coisas. Estava apressado para o almoço e não era eu o suficiente para espantar sua fome. E se foi. O sentimento de pouca importância tomou conta de mim. A pressa era tanta que a mensagem me significava ausência de amor. 

 
Não é a primeira vez que sinto o que sinto, mas, enquanto sinto, sei que será o frio o meu companheiro. É hora de recolher o fio. É hora de aguardar o tempo do reinício. O que aprendi, entretanto, é prosseguir sempre. Com as mãos doídas ou não. Com as desilusões de mais um amor que não resistiu. Apenas, prosseguir. 
Minha avó fechou os olhos, há algum tempo. E eu, de olhos abertos, vejo o passado e o futuro. E os fios que se embaralham nos meus sentimentos. Percebo os meus erros, eles vivem em mim. Percebo a pressa dos que não compreendem que eu posso me arrumar. Percebo, também, os erros dos outros e as minhas implicâncias. Longe de mim, a ideia de perfeição. Não há terreno amigável nas terras em que piso. Meus pés já sangraram muito. Mas meus olhos jamais perderam o poder de ver. O horizonte da vida é convidativo. Há paisagens por todos os lados. Algumas se repetem; outras, não. Todas, entretanto, nos surpreendem. Isso quando saímos a caminhar. Ou a dançar, mais uma vez, com as mãos que preparam um outro agasalhar. 

 
Sei que a educação na infância nos confere amarras para a vida toda e nos prepara os pés para os tais terrenos difíceis de caminhar. Hoje, me abraço a uma velha blusa e me lembro da minha avó e me lembro de que o amanhã existe. 
 
Publicado domingo, 27 de outubro, no jornal O Dia (RJ). 

DULCE MÊS DE OUTUBRO

“Irmã Dulce é, agora, santa. Agora, não. Sempre foi. Mesmo imperfeita como todos os humanos. Mesmo caminhante de um barro empoeirado que nos faz chorar choros doídos.” 

 
Irmã Dulce é, agora, santa. Agora, não. Sempre foi. Mesmo imperfeita como todos os humanos. Mesmo caminhante de um barro empoeirado que nos faz chorar choros doídos. 

 
Foi atacada não poucas vezes. Soube compreender e ensinar: “As pessoas que espalham amor não têm tempo nem disposição para jogar pedras”. Espalhar amor foi sua decisão de vida. Inspirada em outras vidas. Como as de outros santos do mês de outubro. 

 
Teresinha é a santa da delicadeza. A que pedia ao Senhor que, quando partisse, pudesse enviar uma chuva de rosas para acalmar os ânimos dos que vivem por aqui. Francisco é o que sai de Assis para ensinar ao mundo a fraternidade. Irmão Sol, irmã Lua, irmão Dia, irmã Noite, irmãos cantantes em um cenário em construção. Foi ele o defensor da vida e da natureza. 

 
O que têm em comum Dulce, Teresinha e Francisco? Antes de ousar um entendimento, trago a lembrança daquela que apareceu para sinalizar que os que sofriam também eram feitos do tal barro humano. 

 
De um barro, em um rio, surge um sinal. A mãe de Jesus se faz Aparecida. Em sua casa, os choros se multiplicavam e, depois, partiam. E os sorrisos, mesmo que provisórios, acendiam vidas. Em sua casa, correntes que prendiam escravos se partiam e partiam os corações dos que começavam a compreender que ninguém pode ser dono de ninguém. Francisco deixou até as ricas vestes para se sentir livre. Teresinha orou pelo mundo sem nunca titubear na profissão de esperançar. 

 
E Dulce? A doce Dulce dos pobres. A enérgica Dulce dos que teimavam em humilhar. Irmãos seus não nasceram para o abandono. Em cada pobre jogado, um desafio. Em cada vida desperdiçada por vidas insensíveis, um convite à ação. Foi ela curadora de muitos destinos. Foram eles curadores de muitas histórias. E um bocado de vida ia surgindo. E o mundo ia sendo obrigado à gentileza. Mesmo que o mundo de algumas pessoas, apenas. Não importa. Eram os três capazes de amaciar conversar e de incendiar injustiças. Doces e duros. Colhiam a luz da oração para pintar um outro quadro da vida humana. Menos injusto e mais próximo do sonho primeiro do Artista. 

 
Em Aparecida, prosseguem os peregrinos. A simplicidade abre as portas para uma humanidade humana. Os joelhos se dobram para que se escutem as verdades. Não. Ninguém deveria jogar pedras. Não. Ninguém deveria ensurdecer o sorriso. Não. Ninguém deveria esquecer o amor, o amar. 

 
O que têm em comum, então, Dulce, Teresinha e Francisco? Se ainda não brotou uma resposta, prossiga plantando. São eles inspiradores. E como são necessários! Há quem acredite no dual do existir. Que, sem o mal, não compreendemos o bem, assim como, sem a noite, não compreendemos o dia. Há quem acredite que não é assim. Que, em essencial, só há o bem, o mal é um nome que se dá às ausências. Ninguém conhecendo o bem opta por não fazê-lo. Então, está certo que precisamos de inspiradores. Para que não desistamos. Para que não nos esqueçamos de que um fósforo apenas é capaz de trazer calmaria a um medo, mas é, também, capaz de causar medo a uma valente floresta. Há muitos incendiadores por aí. E quanto mal fazem com seus discursos de ódio e com suas esquizofrênicas relações. Chamemos, pois, os iluminadores. Que permaneçam. Em nossa “casa comum”. A casa, tantas vezes, assaltada pelas faltas. 

 
O fato é que ainda nascem crianças. O fato é que a vida não é dada a desistências. O fato é que outubro é apenas um mês, mas, nos outros meses, também precisamos compreender. E, compreendendo, sentir. Ou, sentindo, compreender. Pouco importa. O que importa mesmo é se importar. Foi assim com Dulce, Teresinha e Francisco. Importando-se, mudaram eles o mundo. 
 
Publicado no dia 20 de outubro, no jornal O Dia (RJ) 

MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS

“Tenho saudade do mar. Tenho saudade da primeira impressão que tive diante do mar.” 

 
Tenho saudade do mar. Tenho saudade da primeira impressão que tive diante do mar. 
 
Nasci em um interior e demorei a chegar aqui. Vim descalço de sonhos. Vim fugido de um amor. Ela era o que eu tinha, quando nem vida tinha para contar história. Então, eu inventava. 
 
A dor, eu não inventei. A primeira paixão foi cruel. Ela tinha experiência; eu, não. Ela ria da minha velocidade; eu, não. Temia que acabasse. Acabou. Um dia, ela apareceu com outro. Tão menino quanto eu. E disse nada. Não precisava. E foi assim que, pela primeira vez, chorei de amor. Chorei um choro tão doído e tão constante que aprendi a mentir tristezas. E, nelas, ia acreditando. Não queria que soubessem. Eu fui trocado e isso era fato. Passava pela rua dela e imaginava o que faziam. E rascunhava na minha mente as minhas imperfeições. Ele devia ser melhor, se não, ela estaria comigo. 
 
Foi assim que parti e vim para uma cidade em que ninguém me conhecia. E continuei inventando histórias. E, inventando histórias, fui sendo amado. Falei de uma viuvez precoce. “Minha mulher morreu em um dia de junho. Fazia frio e ela não acordou abraçada a uma foto minha. Uma doença súbita me trouxe o luto. E, por isso, parti.” Quando perguntavam de documentos de casamento, eu explicava que havia me despedido de tudo que lembrava aquele dia. Mudei um pouco a história para nos dizer noivos. Assim, não teria que mostrar documen to. Acreditei tanto que não fui trocado que acalmei a saudade. 
 
Encontrei outra mulher. E, novamente, me ajoelhei. Repeti alguns erros, talvez. O medo de um novo abandono me fez um criador de vitórias. Mentia para ser amado. Apenas isso. Um dia, ela soube que eu era diferente do que eu dissera. Coisa pouca. E se foi. E se foi dizendo que eu era melhor do que as minhas invencionices. Chorei o perdão. Ela disse nada. Pedi que eu coubesse em um abraço seu. Apenas isso. E ela disse que mentiras a perturbavam. Me lembrei de minh a avó que, um dia, se chateou comigo. Contei uma mentira boba de escola. De que havia ganhado um prêmio de poesia. E ela soube que nem concurso houvera. E não me abraçou. 
 
Depois da nova dor, fui ver o mar. Um dia, me contaram que é tudo como as águas que vêm e que vão. Que as pegadas vão se despedindo uma a uma. As belas e as estranhas. Então, é preciso esperar. Nem sei bem se me contaram isso. Não quero mais fantasiar. No carnaval da minha pequena cidade, certa vez, me fantasiei de feliz. Não. Aqui estou eu mentindo. Nem sei se existe essa fantasia. Decerto, não . Se existisse, ia rezar para qu e fosse carnaval todo dia. Mas não é. 
 
Conheci uma outra mulher. E, com essa, entendi a paz. Era bom ir à praia. Era bom ver o quanto ela brincava com as espumas. E o quanto me beijava sem perguntas. Dos nossos sentimentos, vieram nossos filhos. Vez ou outra, me pegava dizendo que vivi o que não vivi. 
 
Não sou um mentiroso. Sei disso. Gosto de florescer nas histórias. Apenas isso. Minha mulher percebia e dizia nada. Apenas me amava. Depois de tantos banhos de mar, ela se foi. De uma dessas doenças que ainda não conseguimos vencer. E eu fiquei. Choramos juntos entre túmulos e vidas. Havia os nossos filhos para dar alicerces. E alguma pouca juventude. 
 
Depois dela, não mais fui ao mar. Era como se aquele lugar fosse para viver junto. Seus pulos cheios de gracejos. Seu mexer de braços. Seu correr sorrindo de volta para a areia, enquanto eu fazia castelos imaginários com as crianças. 
 
As crianças não mais são crianças. Ela não mais virá correndo. E eu já não tenho vocação para construir castelo algum. Sobrou em mim um c asebre de tempo. Ruindo a cada dia. 
 
Estou em um hospital, me recuperando de um corte. Abriram. Tiraram alguma coisa. E fecharam. Dizem que estou bem. Que tudo deu certo. N&atil de;o sei se é verdade ou não. A verdade é que tenho saudade do mar. Algumas pessoas dizem que, na morte, alguém que amamos vem nos buscar e nos conduzir para que tenhamos segurança. Fico imaginando minha mulher saindo das águas do mar e me estendendo as mãos e me chamando para um banho eterno de amor. 
 
Se eu quiser me lembrar das outras que partiram , consigo, mas tenho que me esforçar muito. Talvez me lembre mais da dor que senti quando elas partiram. É assim que é. Um dia, varremos as lembranças que não fazem falta e nos ocupamos de organizar os espaços que, na alma, se chamam gratidão. Nas mentiras, encontrei uma mulher de verdade. E filhos de verdade. E uma vida de verdade. E senti que o amor só é amor quando não exige perfeições. 
 

 
Nas lembranças de gratidão, vejo o sorriso de minha mulher de verdade admirando as minhas histórias e gostando de estar ali, comigo. Não sei se dei a ela tudo o que eu deveria ter dado. Não sei se agradeci o necessário. Éramos, um para o outro, o bastante. E foi assim que pegamos ondas, que ralamos no raso, algumas vezes, que enfrentamos profundidades. Juntos. 
 
Se eu conseguir sair daqui, quero ver o mar mais uma vez. E, se possível, entrar na água e chorar o quanto eu aguentar. E, depois, estar pronto para o que tiver que acontecer. Não. Não estou triste. Estou apenas nadando em memórias verdadeiras. E sorrindo acompanhado. 
 
Publicado no dia 13 de outubro, no jornal O Dia (RJ). 

Devolvam meu sorriso

Senti a dor e guardei o choro para quando estivesse a sós comigo. E, no quarto, chorei arrependido da vida. Depois, tomei um café requentado para esquecer. Essas coisas não se esquecem”  

Pensei em falar para minha mãe, mas tive vergonha. Ela também tem dentes ruins. Meu pai nunca está em casa. E, dele, tenho medo. Para ele, falo nada. 

Os amigos riram de mim. Os da minha classe. Senti a dor e guardei o choro para quando estivesse a sós comigo. E, no quarto, chorei arrependido da vida. Depois, tomei um café requentado para esquecer. Essas coisas não se esquecem. 

Foi o Ricardo que começou. Faz algum tempo. E é sempre quando chego. Ele levanta e me oferece bala. Para aliviar o cheiro. E os outros riem. E ele pede que eu abra a boca. Para um experimento necrológico. É o que ele diz. Diz que tem muito bicho morto dentro de mim. Não abro a boca. Apenas me sento e desejo o fim. E os outros fazem nada. Riem apenas. Um ou outro murmura um “tadinho”. E é só. E voltam ao dia. 

Prestar atenção à aula? Como? Se tudo dói? Minha alma dói. Quando penso em pedir à minha mãe para ir ao dentista, desisto. Dinheiro é fruto que não brota em casa. É tudo tão contado. Pesquisei lugares em que dentistas atendem quem precisa. Tenho vergonha de ir. Se é verdade que meu cheiro é tão ruim, o que pensarão de mim? Mais risos? Mais ditos desrespeitosos? 

Pensei em mudar de escola, queria era mudar de mundo. Queria um mundo onde o riso fosse permitido, independentemente dos nossos defeitos. Queria um mundo em que ninguém precisasse passar pelo que eu passo. Queria um mundo em que uma mãe pudesse amar o seu homem sem medo. Meu pai é violento. Sempre diz que vai mudar. E permanece o mesmo. E minha mãe sussurra com os seus santos de devoção que não aguenta mais. Por que ela não muda? Talvez porque, como eu, também tenha vergonha. 

O cheiro de tristeza ronda minha casa sem descansos. É raro ver o sorriso de minha mãe. Seus carinhos me visitam, quando ela se lembra. Anda esquecida a mulher que tanto amo. Anda sofrida, certamente. E espera de mim um amanhã com mais sol. Pobre mãe, mal sabe ela a vergonha que sou. 

Futuro é um lugar que não cabe na minha prateleira. Há muitos entulhos de ontens, muitas humilhações que me lembram que sou nada. Sou apenas um cheiro ruim. Em algumas noites, converso com o tempo pedindo que não seja tão vagaroso. Quero cumprir o que tenho que cumprir e ir embora. Minha mãe acredita em Céu. Eu também acredito. Não poucas vezes pensei em antecipar a partida. Em dar fim ao cheiro ruim que sou. Mas e minha mãe? Quem cuidará de suas feridas? Se não fosse por ela, eu deixaria alguns dizeres e iria embora. Se não fosse por ela, eu não seria. 

Há um professor que me enxerga. Ele também me ensina a prosseguir. Amauri nos ensina uma matemática da vida. Os números também têm sentimentos. Uma agressão com outras agressões, mesmo que simbólicas, somam perigos que destroem vidas. Um sorriso somado com um cuidado somado de atenção devolve alguma esperança . Amauri diz que eu deveria ser arquiteto. Isso eu disse para minha mãe que ficou orgulhosa. E que enxugou, com o dia, as lágrimas que a noite anterior depositou. 

Na semana passada, Amauri me falou de um dentista que ele foi, primo seu. E sorriu mostrando os seus dentes. Eu fechei ainda mais com força a minha boca. Não queria decepcionar o único que me via. Deu-me ele um olhar e uma luz. Falou sem falar que compreendia o meu sofrimento. No mesmo dia, contou ele uma história de um aluno que deu fim à vida porque não aguentava mais as pequenas ranhuras que lhe faziam na alma. Falou sobre a palavra compaixão. Falou sobre o riso errado de quem ri da dor do outro. Jamais alguém pode ser feliz sobre a miséria de outro alguém. Nada disse sobre mim. Mas percebi que o silêncio daqueles alguns poderia fazer brotar um pouco de respeito. Ricardo, nesse dia, nada me disse. Nem bala ofereceu. Apenas me olhou. Talvez seja ele tão triste quanto eu. Talvez faça o que faz com a ignorância de se imaginar feliz. 

Amauri é um professor feliz. Sinto isso quando ele olha e inicia a sua dança de números e de sentimentos. Vou com ele ao dentista. Vou, sim. E, depois, voltarei a sorrir. E, um dia, serei um arquiteto cuidador de espaços e de gentes. Um dia, minha mãe voltará a sorrir. Não. Não vou desistir da vida. É aqui, onde moram as minhas dores e a minha vergonha, que eu devo ficar. O inverno já me avisou que está chegando ao fim. 

Publicado no Jornal O Dia em 05 de outubro. 

JANELA DO MUNDO

Da janela, vejo a pressa e a calmaria. Vejo as grosserias e a gentileza. Fotografo em mim as cenas belas. É com elas que gosto de sonhar. 

 
Ando pouco. As forças foram embora com as horas. Sem grandes avisos. Um dia, percebi que estava velha. 
Para sempre velha. E o que fazia ficou em um templo de feitos que só podem ser visitados pela minha memória. 
 
Os dias ficaram lentos e as pernas preguiçosas. Ainda organizo a casa. Gosto da varrição. Para convidar a ternura, canto canções de ontem. Vez ou outra, percebo que a vassoura varre nada, apenas os incômodos de um dia de dor. 
 
Hoje, é aniversário de um dia de dor. Quisera eu ter o dom do esquecimento. Ele partiu hoje, faz muitos anos. Deixou uma explicação simplória, desenhou culpas e mais culpas em mim e se foi. 
 
Nós nos vimos poucas vezes. Sem nenhum aceno. Quisera não ter acreditado em amor único. Quisera ter me feito nova para uma nova história. Fiquei, entretanto, aguardando a primavera, aguardando um milagre que fizesse renascer um amor tão lindo. 
 
Ele nunca mais voltou. Tive que me virar sozinha com o frio. De tristeza, fiquei rica. Quando alguém trazia alguma notícia, conversava com as lágrimas para que não viessem enfeitar os meus sentimentos. Tenho vergonha. Soube ele me convencer de que o erro foi meu. Hoje, nem sei. 
 
Gosto da janela da minha sala, porque nela tenho o mundo. O bairro foi crescendo e já não sei de todas as vidas. As que conheço, contemplo. As outras, imagino. Não, não tenho vocação para mexericar. Falo pouco dos outros, mas gosto de ver. E, quando vejo, percebo um mundo que é maior do que a minha dor. 
 
Vi, há pouco, o choro doído de uma mãe voltando da última despedida de uma filha atingida por uma bala perdida. Acendi uma vela, na solidão da noite, e pedi luz àquela família. Vi jovens despreparados para o amor se machucando com gritos de ódio. Lamento todo ódio que há no mundo. 
 
Cultivei a beleza durante muitos anos e, ainda hoje, me ajeito como posso. Gosto de estar bonita como uma prova de gratidão ao universo. Sem excessos. Antônio era mais novo do que eu. E a mulher que me sucedeu mais jovem do que nós dois. Disse ele que não foi a idade, mas minha distância. Falou sobre histórias que ele mesmo criou. Pessoas criam histórias e nelas vivem. E nelas se emaranham e chega um dia que difícil fica saber o que é real e o que é desejo. 
 
Quisera eu ter o poder de curar destinos. Não, agora não estou falando de mim nem de Antônio. Falo da mãe que perdeu a filha. Sei hierarquizar a dor. Não tive filhos. Quando percebi, lá se foram as horas. 
 
Da janela, vejo a pressa e a calmaria. Vejo as grosserias e a gentileza. Fotografo em mim as cenas belas. É com elas que gosto de sonhar. 
 
Jânio tem mais de 90 anos e leva sua mulher em uma cadeira de rodas para se alimentar de sol e para ver o dia. Sempre me comovo. Despistaram os estranhamentos e permaneceram juntos. 
 
Silvia leva o filho que não pode ver para o jogo de futebol. E narra o que acontece. E o abraça em caso de vitória ou de derrota. Daqui, só vejo a ida e a volta. O resto, me dizem ou eu imagino. 
 
Tenho uma vizinha que, como o filho de Silvia, também não pode ver. Mas que, como eu, gosta da janela. 
 
Cortinas fechadas são um convite para o fim. Tenho, ainda, um bocado de vida em mim que me faz gostar do belo e rezar para que o feio não incomode tanto a luz da primavera. O feio é o grito de ódio e o espancamento da alma. É o arrogante e o que mente. É o que tem inveja da alegria. 
 
Do meu jeito, no meu tempo, com as minhas cicatrizes, eu vivo a alegria. Gosto das flores, porque penso nas gentes. Nascemos para florescer. 
 
Ainda nem era primavera quando Ághata se foi. Tristes vidas que se cruzam nos discursos dos feios. E que, prematuramente, se despedem. A minha fé me acalma, a morte é pequena demais para terminar um amor tão grande. 
 
Ouço dizeres desanimados. E compreendo. Mas como tenho, por ofício, ver o mundo, sei que os dias se sucedem e que os que causam desnecessária dor partirão. É a minha esperança. 
 
E quanto ao amor, prossegui amando. E amando prosseguirei. Estou velha. E há muita vida descansando em mim. Termino sorrindo para que amanhã eu possa prosseguir. 
 
Publicado no Jornal O Dia em 29 de setembro. 

Alma arranhada

O tempo foi me ensinando a compreender escolhas e a não invadir espaços. E a respeitar o tempo da compreensão. 

Ele não entende nada de mulher. Fala como se entendesse. Em sua tosca narrativa, elas se engalfinham para estar com ele. Mentira. 

Para minha tristeza, ele é conhecido de meu marido. E, vez ou outra, vem a nossa casa. Não gosto do jeito que ele me olha. Nem do jeito que ele se esconde do meu olhar. Reclamei com meu marido que ouviu, mas apenas fez que concordou. Não prossegui dizendo. Tenho amigas que talvez ele não aprecie tanto. O tempo foi me ensinando a compreender escolhas e a não invadir espaços. E a respeitar o tempo da compreensão. 

Mas, desta vez, ele exagerou. E não venham me justificar com a bebida ou com a decepção, enquanto o time deles perdia um jogo. As palavras expressam sentimentos. E, se só alcançam vida quando há um incentivo, nem por isso deixam de causar dor. E nem por isso deixam de expressar ausências de pensamentos. 

Ronaldo, o conhecido de meu marido, o que tem todas as mulheres do mundo, soltou uma brincadeira típica dos que não têm polidez. Disse ao meu marido que, se ele quisesse, apresentaria duas cujas idades somadas dariam a minha. Ele não sabia que eu estava em casa. Não precisava saber. É preciso fazer o correto sempre. Com ou sem testemunhas. 

Meu marido foi sucinto, “Amo minha mulher, estou feliz com ela”. Ele prosseguiu sugerindo que não era uma troca. Que era uma brincadeira apenas. E, não satisfeito, coroou: “Bonita, sua mulher não é, mas parece muito prestativa.” Meu marido nada disse, pelo menos que eu tivesse ouvido. 

Ronaldo é um homem que jamais usou o coração para o amor. Por isso não entende de mulheres, nem de belezas. Sou feia, então? Para quem? Quem são os meus julgadores? 

Quando se foram, meu marido viu que eu estava no quarto. Preferi dizer nada. O cansaço daquela noite seria suficiente para me sucumbir ao sono. E a oração feita um pouco antes me evitaria pesadelos. Se eu pudesse, limparia o mundo das grosserias. E dos risos que se embalam dessas grosserias. 

Uma vez, meu marido disse que Ronaldo era um brincalhão. Eu disse, sem explicar, que era incapaz de ouvir seu sorriso. Meu marido entendeu e, desde então, falou nada sobre ele. 

Não gosto de gracejos de pessoas vulgares. Cultuo a polidez como quem acredita no belo, na elegância. Eu sabia que sobreviveria àquela conversa se fechasse a porta. E se ficasse apenas com meu marido. 

Ele voltou do banho e me pegou folheando os meus pensamentos. Quis fazer amor. Quis com tamanho calor que acabou por me aquecer. E, em poucos instantes, éramos um. E o resto já não perturbava os meus pensamentos. 

Deitamos depois, de mãos dadas, e nos olhamos em silêncio. A luz do luar quebrava o escuro do quarto. A luz do luar iluminava o mundo. O nosso mundo. E ele me olhava. E me fazia linda. Um perfume vinha dos seus pensamentos. Tantos anos juntos. E não esfriamos. Filhos nasceram e cresceram e não esfriamos. Penso se devo dizer sobre Ronaldo. A cama estava tão limpa que achei desnecessário. Descansou ele o seu dia em mim quando adormeceu em meu seio. 

Tenho apreço pela palavra gratidão. E tenho o hábito de cultivar a liberdade de só me enamorar por almas puras. Seja o meu amor, sejam os meus amigos. Os que têm alma arranhada me incomodam apenas pelo tempo efêmero de uns instantes desperdiçados. Depois, ligo outros pensamentos e corrijo o rumo do dia. 

O sono não se intimidou e chegou quando deveria. Amanhã, acordarei mais uma vez disposta. E certa de que meu marido terá sabedoria para se afastar de quem causa machucaduras em quem ele ama. 

Publicado no dia 15 de setembro, no jornal O Dia (RJ). 

BRASILEIRO, PROFISSÃO LIBERDADE

“A paisagem que o caminho apresentava a incentivava a falar de sua terra. A Bahia de todos os santos. De todas as dores. Da alegria.” 

 
Conheci Claudia, em Salvador. O sorriso chegou antes de qualquer consideração. Estava com alguns amigos em seu táxi. Claudia disse sobre liberdades e sobre os dias que ela sonhava com o nome de futuro. Claudia leva o Brasil no sobrenome. Claudia Brasileiro. 
 
A paisagem que o caminho apresentava a incentivava a falar de sua terra. A Bahia de todos os santos. De todas as dores. Da alegria. 
Falou da filha que, há pouco, se formara na universidade. Falou do que falta para sermos livres. Educação. Enquanto via crianças que se ajeitavam para fazer algum pedido perto do carro que aguardava o sinal, repetia: “Educação. Tivessem essas crianças a oportunidade de exercitar o cérebro, teriam um lindo futuro”. 
 
Fiquei feliz ao ver sua reação, quando ela perguntou minha profissão. Disse estar honrada em conduzir um professor. Disse que gostaria de ter sido professora. É quem carimba os passaportes para o futuro. 
 
Nos seus silêncios, havia contemplações. E, depois, explicações. Não se cansava do horizonte. O mar e seus mistérios. E sua grandeza. Somos grandes, também. E frágeis. E, se não nos cuidarmos, nos perdemos no caminho. 
 
Voltou ao exercício do cérebro. Gostei de sua opinião. Cérebros que não se exercitam desperdiçam amplitudes. Ficam menores. Perdem tempo com pequenezas. 
 
Não gosta ela do rumo que o país está tomando. É pena que os ódios estejam na sala principal. Estamos perdendo a liberdade. Há olhos errados decidindo sobre a nossa cultura, sobre a nossa educação, sobre a abundante vida que mora em nossa natureza. Os tempos de ontem foram melhores para a nossa independência. 
 
Perguntou se eu gostava do Nordeste. Respondi sem titubear. “O Nordeste é fascinante. Cada estado. Cada gente nordestina. Cada cheiro de alegria e criatividade. Desfilei a falar dos poetas da Bahia, dos escritores que ganharam o mundo com suas narrativas do cotidiano”. Ela gostou. Fui adiante. Falei da música. Da criatividade. E aproveitei para usar o conceito do exercício do cérebro. 
 
Claudia Brasileiro entende de Brasil. Nas conversas de pessoas que conduz, observa e, quando permitida, opina. Foi o que me disse. Gosta da conversa porque gosta de gente. E aproveita o que faz para fazer a sua parte na parte do Brasil em que vive. Está triste pelos ódios e pelos riscos à liberdade; está feliz porque acredita na sobrevivência do amor. Ama sua filha. Ama seu país. 
 
Diz sobre os que chegaram à Bahia e se encantaram com a nova terra. Tudo começou por aqui. Os sonhos de grandezas e a perversidade. Os índios sofreram e também os negros e também os pobres. O açoite adormeceu muita história. Evoluímos. Nossa independência não se deu por um dia apenas, por um grito, por uma decisão. Nossa independência se constrói no colorido das nossas diferenças. No dançar coletivo. No subir e descer as ladeiras sem medo de capatazes de ontem ou de hoje. Nas composições diversas nascidas de diversos cérebros que aprenderam a importância dos exercícios. Ninguém pode ser deixado para trás. 
 
Novamente, vemos crianças. Novamente, fala ela da educação. E prossegue ensinando. “Alguns dizem que é preciso matar; alguns, para servir de exemplo, que é assim que se combate a violência. Que é preciso dar segurança aos homens de bem. Estão errados”, decide ela. Ódio gera ódio. E, em meio a um sorriso que ilumina a Bahia e o resto do mundo, ela solta mais um elogio. “Que honra conduzir um professor”. 
 
Chegamos ao destino. Agradeci a aula. Sorriu ela encabulada. As aulas não acontecem apenas nas classes das escolas. Exerce Claudia o seu magistério conduzindo gentes. E o exerce com dignidade. 
Olhei-me no espelho, no quarto do hotel, e falei para mim, para o meu cérebro, para o meu coração, aliviando os cansaços dos dias em que falta sol: “Que bom que escolhi este ofício, professor, profissão esperança”. 
 
Ainda ontem falamos da independência. Sei que ainda falta muito. O Brasil é muitos. E há muitos que aguardam compreensão. Mas há algumas Claudias, por aí, nos provando que o compositor que diz que Deus é brasileiro, brincou, mas não errou. Que bom que nasci aqui. Terra fértil para semeaduras. As pragas vêm e vão. O que é bom há de permanecer. 
 
Publicado no dia 08 de setembro, no jornal O Dia (RJ). 

AMAMENTAR, VERBO INSPIRADOR

“Há muitos emaranhados de nada. De gente que não se revela e que apenas acusa sobre o que não sabe.”  

Tenho aptidão para o silêncio. As quietudes não me incomodam. Gosto, também, da conversa. Quando se destravam os medos e se fala do que importa. 
 
Há muitos emaranhados de nada. De gente que não se revela e que apenas acusa sobre o que não sabe. Disso, não gosto. Quem do outro fala, de mim, há de falar. Quem fala de bondades revela uma face melhor. 
 
Estava sozinho, ao lado de muitas pessoas, na espera da minha vez. O sol arrebentava lá fora. O dia estava agitado, como sempre, com vozes em todos os tons. Por que algumas pessoas falam tão alto? Gritarias sujam o dia. 
Foi quando, em uma cadeira, uma mulher pôs os seios à disposição e alimentou seu filho. A cena me trouxe silêncio. Duas faces, a da mãe e a do bebê. Duas faces na fotografia do amor. Ela, o amor entrega. Ele, o amor necessidade. Ela, a compreensão do significado daquele instante. Ele, o instante. Sentimentos não precisam de explicação para quem os sente. Mas é bonito de se ver. O bebê quase que, animalescamente, sugando a vida. E a mãe quase que, divinamente, oferecendo sua vida para uma outra vida. 
 
É comum que mulheres sintam dor ao amamentar. Que sofram. E que esqueçam o sofrimento. Os dias vão dando tamanho ao filho. Os barulhos deixam de ser de choro e passam a ser de canção. 
 
Enquanto esperamos, há uma música que acalma as pessoas. Os nossos nomes vão sendo chamados um a um. É uma repartição em que se aguardam documentos. Ouço o meu nome e me levanto com calma, enquanto contemplo um pouco mais aquela mãe e seu filho. Ele acabou e agora descansa. Ela o balança com dengo e ele gosta. O que pensa o pensamento de um bebê? Está tudo nos inícios. Ele ri do movimento. E ela prossegue. E prosseguirá para sempre sendo mãe. Uma mulher é outra depois dos filhos. As noites nunca serão como antes. As preocupações ocupam outros espaços. É assim que é. 
 
Chamam meu nome mais uma vez. Preciso ir. Precisava dizer àquela mulher o quanto aquela cena era linda. Talvez diga, depois de ser atendido. 
 
Sentado à mesa, conferem o meu nome. O nome do meu pai. O nome da minha mãe. Enquanto buscam algo, penetro no tempo e brinco de imaginar como eu era enquanto amamentava. Que canções minha mãe cantava. Eu fui o filho mais novo de vários. Ela já havia experimentado a generosidade muitas vezes. 
 
Minha mãe dizia que eu era uma criança calma. Mães dizem docilidades. Nasci grande. Nosso cordão umbilical nunca se cortou. Do leite ao colo. Do colo às mãos dadas. Das mãos dadas ao abraço da chegada depois de alguma partida. Das partidas aos aplausos e silêncios nas glórias e nas tristezas. 
 
No silêncio de minha mãe, alimento minha esperança. De prosseguir. Somos esses punhados de vida. De alimentos em alimentos crescemos. Vez em quando, escorregamos. Vez em quando, barulhos nos atormentam e cenas nos acalmam. 
 
Volta o homem com o documento. Está tudo certo. Agradeço. E volto para a sala de espera. Vou falar com aquela mulher e dizer a ela sobre a fotografia que ficou na minha alma. Procuro e não vejo. Há muitos outros rostos com luzes e rugas naquele espaço, como em todos os espaços. Uma senhora bem idosa, daquelas que são idosas há muito tempo, me sorri e me deseja um bom dia. 
 
Será um dia bom. 
 
Publicado no dia 01 de setembro, no jornal O Dia (RJ). 

OS DIAS FRIOS E OS DIAS QUENTES

“Em casa, falamos nada do ocorrido. Fiquei no meu quarto imaginando a mulher embaixo da terra. E as coisas dela que ficaram na casa. Não eram mais dela. Ela não voltaria mais.” 

 
Acordei, hoje, de conversa com a saudade. É um dia frio. Um dia estranhamente frio para essa época do ano. As temperaturas estão cada vez mais imprevisíveis. Dizem que há excesso de ação humana no curso da natureza. 
 
As feridas, se lhes mexem muito, também ficam imprevisíveis. E ficam nos lembrando do que nos falta. 
 
Pessoas nos faltam. 
 
Um dia, morreu uma senhora na rua da minha casa. É o primeiro velório de que me lembro. Curioso, quis ir. Meus pais permitiram. E lá fomos nós. Havia choro intercalado com conversas alegres. Quando um parente que morava distante chegava, todo mundo chorava. Depois, o curso dos minutos com um café e algum biscoito. 
 
Meus pais não estavam chorando. Em silêncio, rezavam. Resolvi que eu deveria chorar para representar a família. Fechei os olhos e comecei a imaginar alguma dor. Não me lembro das dores fortes que eu imaginei. Das feridas que surgiram na minha mente. Eu era criança. Só me lembro de que chorei um choro tão doído que virei o centro daquela despedida. As frases para mim eram todas reconfortantes: “Que menino lindo!”, “Nossa, quanta emoção!”, “Como pode uma criança sentir tanto?”. Minha mãe chorou junto. Meu pai, também. Fiquei um pouco arrependido depois. Na época, pensava que o choro enterrava a felicidade. E lá se foi o corpo da mulher. 
 
Em casa, falamos nada do ocorrido. Fiquei no meu quarto imaginando a mulher embaixo da terra. E as coisas dela que ficaram na casa. Não eram mais dela. Ela não voltaria mais. 
 
Tive muitas machucaduras na minha vida. Algumas, até desejei. Achava bonito ver gente com o braço ou a perna engessada. Queria ter dentes tortos para usar aparelho. Ficava desiludido quando o médico da escola dizia que eu não precisava de óculos. Doente, me davam mais atenção. Então, não era tão ruim. Feridas no corpo de uma criança cicatri 
 
Fui a muitos velórios. E chorei sem fazer esforço. Quando meu avô morreu, eu, já adolescente, ficava deitado em sua cama imaginando se um dia o reencontraria. É disso que me lembro nesse dia frio. Talvez porque a alma sinta alguma dor. Como se faz com as feridas da alma? Como se apressa sua cicatrização? 
 
Tenho tudo o que preciso e tenho sempre alguma dor. Pelo que me falta? Por que penso no que me falta? Penso ou desejo? Quando tenho, não sinto que tenho. E depois choro. É assim com todo mundo? Percebi que amava depois da partida. Mais de uma vez. Desejava o fim e, quando o fim chegava, lamentava a falta. E a ferida. E o tempo da cicatrização. Foi assim com a morte de pessoas que amei. Foi assim com a morte do amor de pessoas que não sabia que amei. 
 
O choro faz bem. Aprendi com o tempo. Chorar e agradecer pelo tempo. Onde estivemos juntos. Onde deixaremos de sofrer. O passado foi lindo, pena que demorei a compreender. O futuro existe, quero acreditar nisso. Mas é hoje que vivo. Nesse dia frio. Dias frios também passam. Dias frios talvez existam para que celebremos a chegada do calor. Feridas talvez existam para que nossa alma se enfeite de cicatrizes. É como um mapa dos sentimentos que, se soubermos compreender, nos ensinará como um guardador de saudades. 
 
Acordei, hoje, de conversa com a saudade. Foi o que eu disse quando comecei. Sempre começo e sempre persigo o que falta sabendo que tenho o que tenho. Eu tinha pais que me amavam e perseguia as atenções. Carências de criança. De toda criança. Amadureci, mas permaneci carente. Como toda gente. Compreendi que o choro não enterra a felicidade. Faz parte dela. 
 
Daqui a pouco, meus filhos acordam e vêm brincar comigo. E a conversa muda. A saudade compreende a alegria e parte. E depois volta. Como os dias frios e os dias quentes. 
 
Publicado no dia 25 de agosto, no jornal O Dia (RJ). 
 

DIFÍCIL RECOMEÇO

“Tem gente que diz que o aluno faz a escola. Não sou sabido para dizer o certo, mas gosto das matérias dos professores que gostam da gente.” 

 
Não é fácil. Na minha idade, não é fácil. Fiquei muito tempo usando o tempo para outro fazer. O trabalho exigiu de mim, meus filhos, também, e minha mulher. Não lamento. As páginas vão sendo viradas. E o que se viu, de alguma forma, fica. E o que se fez devia ter sido feito, é o que eu penso. 
 
Cresceram eles. Cumpri o meu paternal destino. Fiei os meus dias costurando futuros, com eles. Com minha mulher. 
 
Amanda nunca reclamou de meu pouco estudo. Quando nos casamos, ela já era formada, já administrava companhias, já liderava. 
 
E eu dirigia, levando pessoas de um lado a outro. Foi assim que nos conhecemos. Em um dia em que o céu inteiro se derramava em água. Para fugir da chuva, ela acenou. Entrou no meu carro, disse o destino e nos olhamos. Eu cedi um lenço para que se secasse. Ela agradeceu. Falamos nada no início, mas nos olhamos. O espelho do carro me revelava os olhos que me acenderiam os dias. E assim nos amamos até hoje. 
 
Quando disse que voltaria a estudar, ela apenas ofereceu o sorriso rotineiro e fez um comentário elogioso. E me beijou com sabor de novidade. O tempo não nos esfriou. Gostamos de nos sentir e nos sentimos dispostos a permanecer. 
 
Não tenho apreço pelas mentiras. Já tivemos que limpar muita história. Já nos estranhamos em nossas diferenças. Mas o tempo foi nos convencendo de que era bobagem deixar a mesa posta e tentar outro lugar. Nos alimentamos até das dores e aqui estamos nós. Inteiros. 
 
No primeiro dia de aula, entendi nada. Sou lento para a escrita, embora seja atento para a escuta. Sou o mais velho da turma. Isso não me incomoda. Chego cedo e me preparo para o novo. 
 
Entra e sai professor. Matérias diferentes vão forçando o meu cérebro a se exercitar. Às vezes, me canso. Meu pensamento viaja a lugares outros que a sala de aula. Às vezes, me boicoto. Digo para mim mesmo que é bobagem tudo aquilo. Às vezes, me elevo e fico em êxtase por aprender o que não imaginava. 
 
Tem gente que diz que o aluno faz a escola. Não sou sabido para dizer o certo, mas gosto das matérias dos professores que gostam da gente. 
 
Amauri é um professor que nos enxergou, desde o início. Quis saber o nosso nome e outras coisas. Sua conversa já era um ensino. Gostei quando disse que o que mais gostava na vida era de estar ali. Com a gente. Falou de umas teorias textuais e nos pediu que escrevêssemos uma carta. Linguagem epistolar. Eu nem sabia o que era. Ele explicou. Escrevi uma carta para Amanda. Ele gostou, sentou comigo e foi sugerindo consertos. Disse que o mais importante eu tinha, os sentimentos. O resto se aprende. 
 
Julia é professora de matemática. Disse que os números são mais fáceis que as pessoas. E riu. Gosto de quem gosta de sorrir. Vou anotando como posso e, no tempo que posso, estudo. 
 
Vou me formar aos 60 anos. Não sei se vou mudar de trabalho. Gosto de dirigir. E de imaginar a vida dos outros. Sem inveja alguma. Só curiosidade e admiração. Quando vejo dois velhinhos de mãos dadas no meu carro, penso em Amanda. Quando vejo dois jovens começando, penso em Amanda. Quando chove, me lembro do primeiro dia com ela. E, quando não chove, me lembro dos outros dias. Com ela. Foi mais ou menos isso que escrevi. Que vivi. Ele quis que eu lesse alto. Corei. Tenho uma certa timidez. Li. Gostei de enfrentar os meus medos. Outro havia lido uma carta de pedido. Outro, de despedida. Quando li a minha, alguns pediram para refazer as próprias. Falar de amor contagia. 
 
Meus filhos brincam comigo. Dizem que fico bobo quando olho para a mãe deles. Pode ser. Ontem, disse a ela sobre o poema de Drummond. “No meio do caminho havia uma pedra”. Ela continuou. E falou das flores. E me declamou Cora Coralina. Enquanto falávamos, os nossos dedos brincavam de amar. E, depois, prosseguimos sem as palavras… 
 
Publicado no dia 18 de agosto, no jornal O Dia (RJ).