Dois irmãos

Outras histórias surgiram na minha vida, naturalmente. Nunca fui de soprar querosene em fogo, sou do aconchego. Sou respeitador do tempo e amigo das calmarias. Elas chegam, é só ter paciência. 

 
Faz tempo que aconteceu. Mas até mesmo o tempo fica, quando o que fica faz tão bem. 

Faz bem lembrar, revisitar o que fiz de bem. E o que ficou por fazer. Longe de mim a miragem da perfeição. O barro de que sou feito tem saliências, tem quebraduras, tem remendos. Mas está em pé, como deve ser. E caminha. Sempre caminhou. 

Eram dois irmãos. Eu os conhecia. A cidade era pequena. Os nomes e apelidos estavam em nós. E os cumprimentos. E os encontros. Um bar ali, uma feira com o seu vendedor de pastel, uma partida de futebol em um dos dois times da cidade, um mergulho de rio. 

Havia um beco que guardava mistérios. Não sei por que me lembrei disso agora. Mas, na infância, eu tinha medo. Diziam que os mortos se encontravam ali. Eu, que sempre gostei de cemitério, evitava o beco. 

O tempo foi golpeando e vencendo e voltei à cidade, depois de me formar em Direito. Era um jovem advogado em busca de seus primeiros consertos. Queria consertar o mundo! 

Jerônimo foi preso. Não importam aqui as razões. Foi preso. E, na prisão, foi convencido de que seu irmão, José, era o responsável. Fui estar com ele. Abraçou-me entre grades. Chorou o choro dos injustificados. Jurou vingança. Ouvi. Prometi defendê-lo. Falou-me da vergonha e do irmão que o vendeu como traficante. Ouvi novamente. E, novamente, me fiz compreensivo. 

Saí e voltei outro dia com os argumentos que usaria. Entregou-me ele uma carta, fechada, para o irmão. Chorava de ódio. Pediu que eu lesse, se quisesse. Nada disse. Mas quando saí, li a carta. Era um desabafo de ódios e acusações. Resolvi guardar a carta. Rompantes precisam ser depurados. 

Dois dias depois, ele estava solto. E o irmão foi abraçá-lo. Choraram juntos o choro do amor. Não havia culpados. Havia uma praga chamada injustiça que vem e atrapalha. Jerônimo me olhava com curiosidade. Esperou o irmão sair de perto e quis saber. Eu disse que não havia entregado a carta. Que achei melhor esperar. Ele repousou e, em um abraço agradecido, suspirou aliviado. Pediu que eu a rasgasse, que a queimasse. E disse algo como que “injustiças geram injustiças”. Cegou-se ele na prisão e deixou de ver o quanto o irmão era bom. 

Outras histórias surgiram na minha vida, naturalmente. Nunca fui de soprar querosene em fogo, sou do aconchego. Sou respeitador do tempo e amigo das calmarias. Elas chegam, é só ter paciência. 

Nunca mais os vi. Mudei-me para a grande cidade e, aqui, permaneci. Mas, em mim, permanecem essas histórias. Ainda me comovem. Lembro-me dos erros, certamente. E tento aprender. Mas o que emociona são histórias que a minha história ajudou a amar. 

Jerônimo. José. Nomes sagrados. Os segredos são importantes. Há muita pressa em revelações. Nunca disse nada a ninguém. Queimei a carta. Guardei o ensinamento. Aumentar a dor não é meu ofício. Nunca. Nasci para os alívios, por isso gosto de envelhecer. O passado não me atormenta e o futuro ainda existe. 

Publicado no dia 26 de maio de 2019, no jornal O Dia (RJ). 

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